eu descobri esses dias que tá proibido falar mal do caetano veloso na internet. ia escrever caetano veloso evangélico mas, pensando bem, e arriscando ser permanentemente cancelada, faz um tempo que o caetano veloso já não me interessa mais.
essa epifania valiosa me ocorreu também no meio do show do chico buarque e enquanto eu lia a descrição de uma obra de arte da moça famosa de inhotim. puxa, legal, mas não me interessa mais.
sim, esse é o texto em que eu entrego as minhas últimas carteirinhas. podem levar!!!!!!
veja bem, esse é um texto sobre mim e meus gostos pessoais na minha newsletter para as pessoas que por algum motivo disseram estar interessadas no que eu escrevo. ah mas a importância dessas pessoas para a cultura brasileira é indiscutível e é e como assim você está dizendo que o que eles produzem é ruim não estou. por isso esse texto se chama tem coisa que já não me interessa mais: depois de falar essa frase em voz alta no caos horroroso que foi a organização do Grande Encontro da Santa Cecília #meaculpa.
isso também não quer dizer que eu não me emocione. caso vocês tenham esquecido com quem estão falando, eu choro diariamente quando lembro que na minha casa existem oitenta unhinhas que precisam de corte uma vez a cada quinze dias. que eu não ache bonito, importante, que não cante junto e dedique algumas das músicas nas minhas redes sociais em tom de indireta. não sei se todo mundo recebeu o memorando, mas dá fazer os dois: falar mal e cantar a música. cês foram criados nos anos 2000 junto comigo, nem vem, que cês sabem: uma mão no joelho, a outra na consciência.
todos de acordo que esse texto não vai abalar profundamente a carreira musical nem a reputação de um dos maiores artistas brasileiros de todos os tempos, tampouco fazer apologia a sistemas de governo despóticos e violentos? ok, sigamos.
eu percebi essa tendência na minha vida nos últimos tempos: as coisas deixarem de fazer sentido minhas referências têm mudado drasticamente.
tudo começou com o famigerado podcast da jout jout.
talvez eu nunca consiga explicar com clareza o tamanho do enjôo que eu senti ao ouvir o primeiro episódio daquela conversa extremamente mal diagramada, e não pela falta de habilidade jornalística, das mãos dadas com intenção, dos sonhos de vida trad wife haribô e das casas de palha na chapada (não por isso kkkkkkk), mas pelo espanto ao perceber que eu moldei parte importante da minha personalidade a partir de uma referência tão completamente distante da minha vida. e que, em última instância, não me interessa em nada.
com quantos anos você percebeu que sua referência jovem adulta é mais uma herdeira da elite cultural que faz cerâmica com um filho chamado caetano? 35 aqui.
moldar é uma palavra importante aqui, embora me pareça mais orgânica do que na verdade tenha sido essa construção. agora sim. o tema recorrente desse ano pra mim; em que caralhos de lugar eu pertenço? da onde eu sou?
a verdade é que eu nunca tive mesmo essas referências: eu fui lá garimpar cada uma delas pra mim. eu não cresci ouvindo MPB pra além do que já era mainstream o suficiente pra chegar na casa dos meus pais, já autorizado por todas as instâncias culturais que faziam as músicas bobinhas e festivas o bastante. eu também não fazia ideia de que pra viver uma vida trabalhando com o que se gosta, mudando a vida das pessoas e sendo autenticamente quem se é, você precisaria também vir de uma família com propriedades que datam do século passado e diplomas da usp. eu quis ter/ser tudo isso e eu fui atrás de cada uma das coisas que me pareciam bonitas, emocionantes, intensas, encantadoras, como quem faz uma exploração científica em madrugadas insones de internet discada.
Eu vivo cercada de coisinhas desde muito nova: brinquedos, retalhos que a minha vizinha que era costureira me dava, livros da Série Vagalume, meia dúzia de canetas gel. Um catálogo de objetos e, mais tarde, de interesses e preferências que foram construindo quem eu sou. Quinquilharias que fui juntando ao longo da vida, cacarecos que respondem boa parte das perguntas sobre mim.
Quando tudo faltava, lá estavam as bandas que eu gostava, as revistas que me entretinham e uma mala cheia de conceitos, ideias e assuntos que enchiam o meu peito de alguma esperança. Foi a partir desse repertório, inclusive, que descobri possibilidades que iam além da realidade onde eu estava inserida.
“é o repertório que preenche algumas faltas."
— inventário de gostos, da tamires correia.
e aí eu me deparo comigo sendo um clichê ambulante com minha camisetas das tetas da bethânia e meu luto inconsolável pela perda da gal e minha constante crise existencial num bairro em que as pessoas vão à feira comprar seus orgânicos de cropped. completamente despersonalizada, sem entender como eu cheguei até aqui and sabendo exatamente o s-u-f-o-c-o que foi percorrer ativamente esse caminho. uma sensação de que agora que consegui o que eu queria, vi que não era tão legal assim — aquela frase sobre leis e salsichas aqui, cês sabem qual.
aliás, percebi que, em algum lugar, eu odeio isso tudo. ou, no mínimo: essas coisas não me interessam mais.
Nessa fase onde tenho sido guiada pelas minhas paixões, tenho olhado para as coisas que gosto a procura de respostas. Pistas, atalhos. Qualquer coisa que me coloque em um caminho mais condizente com aquilo que acredito.
Abro as portas que dão acesso ao repertório que criei nesses 30 anos e dou de cara com estantes repletas de livros, sabores, músicas, lugares, filmes, cheiros e texturas que fazem de mim isso que me tornei.
— inventário de gostos, da tamires correia.
essa frase do maravilhoso texto da tamires me pegou demais e já foi reproduzida em mais cadernos, textos, rascunhos, post-its do que eu gostaria de admitir: tenho olhado para as coisas que gosto a procura de respostas. a materialidade dela me encanta profundamente (tá vendo? estou viva!!!!). eu, sim, tenho olhado para as coisas que gosto — e que tenho — na ânsia que elas me respondam as perguntas que eu nem sequer terminei de formular. com raiva, até, como se tivessem a obrigação de me contar que bagunça é essa que eu me tornei e que não faz mais sentido.
nessas, eu mudei toda a disposição dos móveis da casa, me livrei de itens que carregava comigo desde meu primeiro apartamento em são paulo, e doei praticamente todo meu armário. e cortei meu cabelo de forma radical para os 35 anos, claro. ai que bonito essa reconstrução, a oportunidade de recomeçar do zero, de se mudar pra um terreninho na chapada e viver uma vida mais simples: custa dinheiro, gente. se você não é a personagem principal de sex and the city, a troca de figurino faz com que se contraia dívidas até 2026, eu atesto e dou fé. ah que bonito uma vida cheia de possibilidades: eu sinto raiva ao ouvir as músicas das quais sempre gostei. me sinto completa e totalmente desinteressante, um arremedo de quem eu sempre quis ser e, bom, que eu fui, por um nem tão breve período de tempo.
e descobri que é pior que salsicha.
é assustador.
precisa de atenção pra fazer essa revisão de personalidade do mesmo jeito que a gente tem que olhar peça por peça quando quer limpar o armário, né, num tem jeito. marie kondo é a referência que jamais deixaremos morrer nesse perfil!!! e tem aí essa conexão bonita entre concentração e amor. se olhar com cuidado é, de alguma forma, dar a importância dos detalhes às pequenas partes que constituem a gente, é dizer com ações que há importância.
o tipo de manutenção da vida que me interessa, aquele de estar consciente de todo o trabalho necessário pra manter tudo não só em ordem, mas fértil e feliz: bichos, plantas, pessoas — com água encanada, saneamento básico, eletricidade e minha recém adquirida máquina de lavar louças, cês parem de vaporizar o útero aqui.
todo mundo que entra em casa diz que 1 tem muita coisa 2 parece um museu 3 é a sua/minha cara, até o rapaz que veio instalar a máquina de lavar louças, um querido. quase nada do que eu tenho tem um propósito (exceto ela, a máquina de lavar) mas tudo o que eu tenho tem um motivo. pequeno e provavelmente insignificante pra qualquer outra pessoa que não seja eu mesma.
talvez essa seja a resposta pras perguntas que eu faço olhando pros meus vaso de planta, coitados. as coisas já estão aqui. talvez só esteja faltando abrir as pastas com as músicas do soweto. mais belo, menos caetano.
virge.
Repetição esta que pode até soar tediosa para alguns, mas que pra ele [o cara do Dias Perfeitos] funcionava como um lembrete diário de que já possuía uma vida repleta de coisas de seu interesse e que isso era suficiente.
E é justamente esse exercício - de olhar para quem eu sou, o que gosto e o que já possuo, que me ajuda a criar filtros criteriosos quanto ao que não merece a minha atenção (o meu dinheiro, o meu tempo…).
— inventário de gostos, da tamires correia.
agora, a bethânia: não mexam com a bethânia não, hein.
prometo fazer uma listona com as coisas que ainda me interessam profundamente sem usar a palavra hiperfoco. ainda esse ano. ou no próximo. aguardem!!!!!!!
Isadora, eu te acompanhei na internet uns anos, na época do veganismo, do relacionamento aberto, do corte de cabelo descolado, das roupas diferentonas. Depois, essas referências todas me cansaram e parei de te seguir. Me arrependi quando você resolveu sair da internet, voltou a me interessar. Graças a deus assino a newsletter desde não sei quando e amei quando você voltou a escrever. Hoje, eu não tô mais nas redes sociais porque aquilo lá me tirou de mim mesma com essas referências que a gente nunca teve mas acha que tem que ter.
Não tenho que achar nada, mas acho que você deveria escrever um livro. Obrigada por descrever a agonia exata do podcast da jout jout hahahaha
Obrigada por escrever, é muita generosidade sua compartilhar tanto e tão bem e de uma forma tão genuína o que você tá vivendo.
ainda bem que tem você nessa internet, <3