eu nunca mais fui capaz de decorar um endereço, não sei nenhum telefone de cor — lembro dos números quando ainda começavam com três dígitos e de como ligar pra casa do gustavo, o único menino do pré que tinha olhos azuis. de resto, hoje em dia, se ficar sem minha lista de contatos, talvez (talvez!) consiga entrar em contato com o telefone fixo dos meus pais. imagina o desespero.
a gente tem gps, google maps, a pabllo no waze ajudando o motorista a lacrar, alexa discando direto pro contato na agenda, e meu senso de orientação é cada vez menos estimulado. se cortarem o cabo da internet (estou torcendo!) é capaz de girar em círculos até alguém interromper o fluxo, igual ao que tenho que fazer com meu robô aspirador da shopee. a direção certa nunca foi meu forte, e até hoje eu me perco, muito, na garagem do prédio — e olha que nem dirijo.
aliás, tem isso também: a única forma que eu sei me locomover é com meus próprios pés. tenho pavor de carros, aprendi a pedalar, mas não o suficiente, não concordo com o conceito do patinete, e bom, eu não sei nadar. disso cês já sabem.
tanta coisa ultimamente tem me levado pro fundo que aprender a nadar me pareceu urgente: uma estratégia de sobrevivência. como cem por cento de todas as coisas que eu boto na minha cabeça, a minha busca pelas baleias (ahab e attab, já perceberam? kkkkk), então, consistia em não só entrar num barco pilotado por outras pessoas, profissionais, usando um colete salva-vidas e meus tênis da moda que destruí na lava-e-seca, fazer vídeos de péssima qualidade pro meu instagram e tomar um vonau, mas, claro!, me tornar uma mergulhadora profissional, quiçá dessas pessoas que se lançam ao fundo com um tanque de oxigênio e um sonho. tudo pra tornar tudo mais trabalhoso, caro, e, óbvio, absolutamente impossível.
foi nesse surto movimento que eu descobri (em terra firme) que quando uma pessoa está embaixo d’água, em mergulho, não tem celular (ainda) que funcione, e também não tem sinal de satélite, gps ou pabllo vittar que aguente. para orientação embaixo d’água, usam-se os elementos do entorno, o relevo natural, corais e outras formações biológicas, inclinações importantes do solo arenoso, rochas estrategicamente em repouso. esse método é chamado de orientação natural.
mas estar em alto mar faz com que a gente perca a dimensão das coisas — as referências. perto e longe se confundem, as ilhas são como vizinhas, mas estão a quilômetros; parece que você nunca vai ser capaz de tocar o chão até ralar os joelhos na areia; voltar pra terra firme se apresenta como uma viagem longuíssima, uma epopeia, uma expedição de dimensões históricas, capaz de inaugurar uma nova era.
e acontece, também, da visibilidade não estar tão boa, o mar agitado, a chuva na madrugada, o lixo acumulado por desleixo ou ritual. e aí se marcamos visualmente alguns pontos de referência para saber se estamos na direção certa e, mais importante, se estamos voltando para perto de nossa embarcação, aí complica: às vezes a gente não tem pra onde olhar.
então entra a função da bússola: esse instrumento que permite determinar direções devido ao campo magnético da terra e uma agulha que aponta sempre pro norte — como se fizesse sentido voltar pra lá. os textos de apresentação das escolas de mergulho são tranquilizantes: se à primeira vista, a bússola pode parecer um instrumento complexo e confuso, seu uso embaixo d’água é extremamente simples: basta confiar em seu funcionamento e aprender os conceitos básicos.
Devia haver um bom motivo para o corpo humano não ser capaz de visitar certos lugares. Onde a sensatez não servia como freio para a curiosidade de mamíferos teimosos, a menos que o próprio corpo servisse como limite. […] O que um ser da terra poderia querer com um mergulho?*
reconhecer o entorno, encontrar boas referências, estáveis, mas que possam ser deixadas pra trás quando for preciso. horizonte e fundos limpos, claros, visíveis. uma boa bússola. conhecer os conceitos básicos e confiar no seu funcionamento — tudo o que possa aumentar a sensação de conforto e segurança. estou pronta pra aguçar todos os sentidos dessa orientação subaquática, parece. vamos?
orientação subaquática é, assim, uma sessão dessa newsletter em que eu compartilho o que apareceu cruzando meu caminho nesses mergulhos rumo ao fundo; não de maneira aleatória, mas também: com o espanto das descobertas que puxam umas as outras, formando uma linha de pensamento encadeada pelo entusiasmo. com calma, reconhecendo o entorno, tateando o fundo — e voltando a partir dele, depois, pra perto da minha embarcação.
procurando alguma direção de um nome, namorei durante um tempo a palavra diletante — dessas que a gente usa até que certinho, mas nunca parou pra conferir o verbete no dicionário. até então, pelo menos, eu estava certa: 1 diz-se de ou pessoa que é aficionada por música; 2 diz-se de ou amante das artes em geral e da literatura; 3 que ou quem exerce uma arte como amador ou se dedica a um assunto exclusivamente por gosto e não por ofício ou obrigação; 4 (pejorativo) que ou aquele que trata de um assunto medíocre e superficialmente.
para tratar de um assunto de maneira medíocre, conte comigo! das grandes travas que sempre me coloquei, a perfeição (teórica, conceitual, de pesquisa histórica, da originalidade, da forma, do ritmo, do vocabulário, escolha seu pokemón) é a mais exigente, e quem sabe se eu rotular tudo assim, logo de cara, consiga me livrar dessa chefe carrasca que eu mesma sou.
que faz por prazer. exclusivamente por gosto: não por ofício ou obrigação. retomar a sensação de fazer por prazer tem sido o meu bote salva-vidas. que loucura que é a gente se distanciar tanto de quem se é, não é? um monte de és, assim mesmo, de propósito. que seja então essa uma expedição de retomada. uma aventura meio sem rumo, em direção pra dentro e pro fundo, orientada pela vontade de descobrir.
aviso aos navegantes:
agora essa newsletter então tem seções, eu acho!
✍🏼 um texto por mês, diretamente das profundezas da minha cabeça — como já fazíamos antes, agora com data marcada: na última quarta-feira de cada mês.
🌊 orientação subaquática: um compilado de referências, artigos, artes, textos, músicas, e seja lá mais o que for, sobre um tema que me atravessou nos últimos tempos. vem mais uma vez por mês, acho que na primeira quinzena. acho.
💭 tenho gostando de compartilhar outras newsletters que me tocaram e seus trechos e citações lá nas minhas notas — que maravilha é voltar a ter uma comunidade saudável de gente que escreve e que lê, gente, aproveitem!
🍬 eventuais extras gostosinhos, que eu ainda não descobri o formato e talvez nem vá, mas tenho vontade: textos (ainda) mais pessoais sobre processo criativo, escrita, a vida e tudo o mais. quem sabe outro formato?
mergulho livre:
temporada de baleias foi o texto que gerou tudo isso — os links, a pesquisa e a vontade, aliás. eu tenho um carinho especial por essa edição da newsletter que derreteu um monte de coisa que andava rígida por aqui, em forma e em conteúdo. se ainda não leu, dá uma chance! 🐋
o episódio mistérios do corpo do podcast rádio novelo apresenta que conecta (daquele jeito que eu digo em voz alta: não é possível!) dois temas que me tomaram nos últimos meses: baleias e dor. quer dizer, uma parte sobre uma coisa, outra parte sobre a outra — as duas valem a pena de ser ouvidas.
Era um barulho poderoso, contínuo, que se espalhava em lamentos, conversas e canções, vindas de todos os lados, vindas de todas as vidas dali, uma conversa muito mais antiga que a existência daquele mamífero a se aventurar na água, e muito mais longa do que o tempo que ele conseguia ficar sem oxigênio. Era um som muito antigo, mas que continuava lá, contando coisas novas enquanto ele existia, nadava e voltava para a margem, de repente sentindo muita sede. Cercado de água, mas com sede.*
uma das coisas legais que o episódio anterior apresenta rs é um resuminho sobre a evolução das baleias: um bicho gigantesco, um mamífero como-a-gente, que chegou no ponto alto da vida na terra e falou: bora voltar pro mar que é melhor. entende? isso há 47 milhões de anos, um pouco antes da gente ter que voltar pro trabalho presencial, sabe?
se formos entrar no tema o canto das baleias, segura, que nossa viagem vai ser longa: tem desde inteligência artificial desvendando o alfabeto que as cachalotes usam até uma galera relacionando isso com comunicação com extraterrestres. tem pra todo gosto! aqui minhas descobertas favoritas depois de horas (muitas!) de observação e pesquisa:
no final de um dia de alimentação, as cachalotes se reúnem na superfície e se esfregam entre si, conversando enquanto socializam — igualzinho a gente no bar da tati de sábado, quando faz sol.
a gente sabe muito pouco sobre as cachalotes porque elas passam pouco tempo na superfície. “estamos presenciando apenas um rápido momento das suas vidas durante aqueles 15 minutos na superfície”. viver primeiro, postar depois — certíssimas elas.
elas vivem em sociedades de linhagem matriarcal, em grupos de filhas, mães e avós; já os machos ficam por aí visitando ocasionalmente os grupos pra acasalar. elas têm um comportamento social complexo e podem tomar decisões em grupo pra se proteger: cientistas encontraram um exposed de macho tóxico gravado numa concha. verdade.
depois de quase 20 anos e milhares de horas de observação, pesquisadores descobriram detalhes novos sobre a vocalização das baleias, como estruturas de comunicação muito parecidas com a linguagem humana: sequências rítmicas de cliques, chamadas codas, uma espécie de alfabeto fonético, as unidades de som que se combinam para formar palavras.
às vezes, elas acrescentam um clique a mais no final de um coda, de uma forma parecida com a ornamentação na música humana, inclusive de maneira contextual. ou seja, dá pra ouvir baleias falando mâno… e manôooo!!!!!! — isso ali na região de santos e guarujá. risos.
Quanto mais fundo se descia, mais espaço as criaturas encontravam para crescer.*
uma expedição de 45 dias realizada em março deste ano em áreas abissais de 3,5 mil a 5,5 mil metros de profundidade entre o havaí e o méxico, descobriu novos animais nunca antes vistos como o ridículo porco-do-mar do gênero amperima apelidado de barbie porque é rosa. ele(a) vaga pelas planícies vazias do oceano em busca de detritos orgânicos, agindo como um aspirador de pó:
porcos-do-mar barbie são meninas, azúlis são, claramente, meninos, além de uma espécie de lesma-do-mar pelágica pertencente ao grupo dos moluscos nudibrânquios. medem de 3 a 4 centímetros de comprimento e têm dentes em formato de espadas. uhum:
"eu pedi muito gentilmente às pessoas que me deixassem dar uma olhada nos baços delas" é a frase preciosa da pesquisadora melissa ilardo, que me chamou atenção pro povo bajau, os quase 1 milhão de pessoas do sul das filipinas, indonésia e malásia, que vive em barcos-casa, viajando de um lugar para outro nas águas do sudeste asiático e parando em terra firme só de vez em quando. eles conseguem tudo o que precisam no mar e, por isso, gastam quase 60% do tempo embaixo d’água, a mais de 70 metros de profundidade. a coisa do baço é uma evidência da adaptação evolutiva que aconteceu por causa do estilo de vida aquático: o órgão é um reservatório de glóbulos vermelhos oxigenados que, quando contraído, funciona como um tanque de mergulho biológico. sério!
*todas as citações dessa edição são do livro as águas vivas não sabem de si, da aline valek, que eu demorei muito tempo pra ler porque
eu sou trouxaficava repetindo que não tinha nada a ver com o meu estilo de leitura. bom, o meu estilo de leitura é livro bom pra caralho que me desmontou em pedacinhos e se tornou um dos meus favoritos de todos os tempos; ainda mais nessa fase ciência, fundo do mar, fundo da menterisos. não preciso dizer mais nada:Contornavam o submarino, passavam rentes às janelas de vidro, um tripulante deixou escapar uma lágrima, de repente se sentindo abraçado e achando que era, de alguma forma, especial por testemunhar aquele incomum fenômeno, completamente ignorante do fato de que as águas-vivas também eram ignorantes de sua existência e que, portanto, aquele show não era destinado a eles. Apenas seguiam seus caminhos, simples assim. […]
Era estranho ser sozinha, não ser parte de nada, a solidão tão desesperadora quanto a própria morte. À medida que ela subia, apenas carregada pela água, pois seus membros não obedeciam aos seus instintos mais básicos, aquelas questões pareciam ganhar uma importância tão grande quanto um submarino que a arrancasse de seu caminho. Foi quando aconteceu algo bastante incomum para uma água-viva, algo que só um acidente tão trágico poderia desencadear: a consciência de que era um indivíduo. […] Descobriu com alguma infelicidade que ser um indivíduo era também ser pequeno e sentir medo o tempo inteiro. […]
Então foi invadida por uma enorme tristeza: se todos aqueles à sua volta também fossem como ela, então igualmente eram seres preenchidos de medo, sofrimento e solidão, todos fazendo o seu possível para sobreviverem, também como ela. O sentimento era um vestígio do que havia ficado para trás: a sua capacidade de sentir pelos outros, uma conexão profunda que a tornava quem? Mas o que faria com aquilo agora que era sozinha? Esqueceu. Aquele instinto básico que a construía como parte de um organismo maior se dissolveu com tanta coisa para prestar atenção ali em cima. Talvez ficasse por ali, não? Podia aproveitar o que lhe restava de vida para perseguir as questões que aos poucos mexiam com seus sentidos, aproveitar que, com a luz do sol tão perto, não precisava mais brilhar por conta própria. Era um ser, era única, era importante, devia existir por um motivo, as coisas não deviam acontecer por acaso; era especial.*
fiz um negocim aqui 🌊:
o filme hypado nyad tem tudo pra ser ruim em muitos níveis: a noção de super heroína tocando corneta, a meritocracia, as lições de moral, o patriotismo, a famiglia grega etc. mas também tem das minhas coisas favoritas que são histórias de sapatão da terceira idade fazendo coisas daora demais, tipo atravessar a nado a distância de cuba até a flórida — e, portanto, imagens belíssimas de cuba, do mar, dos corpos velhos saradíssimos da annette benning e da jodie foster (!!!!!!!), de bichos marinhos assustadores, etc. de quebra, dá vontade de aprender a nadar (sesc, me ajuda, sesc).
e professor polvo, que é uma das coisas mais lindas que eu já assisti na minha vida: a história da relação construída entre um documentarista e uma polva — sim, é menina. sensível, consciente, delicadíssimo, com imagens maravilhosas e assustadoras. tem um oscar, até, mas agora tem todo meu amor também (netflix).
Estar dentro e fora ao mesmo tempo. Isso é estar.*
*todas as citações são do livro as águas vivas não sabem de si, da aline valek.
playlist perfeita <3
Vc já viu a história da baleia mais triste do mundo? Eu já ouvi há um tempo e repito de formas diferentes, mas tem matéria nos jornais. Basicamente, ela se perdeu do grupo dela e, como as baleias falam em frequências diferentes, ela nunca mais achou um outro bando, então ela vive sozinha pelos oceanos.