parte 1
ver baleias, assim, de verdade, era até outro dia como aquelas noites em que eu estou voando com os braços colados no corpo por cima sempre da mesma floresta verde clara. um sonho, realmente, mas não dos que se escreve de caneta ou se revela por aí em entrevistas de emprego, tipo ter uma casa própria ou estabilidade financeira. ou dos que a gente só confessa meio bêbada ou muito triste: comprar tudo o que eu quiser no mercado sem prestar nenhuma atenção. desses que estão longe, mas que a gente acredita porque ainda acontecem mais ou menos com as pessoas que estão em volta, porque dá pra imaginar, a gente até sabe (mais ou menos) como.
ver baleias de verdade, por outro lado, eu nunca nem quis saber o que seria necessário. óbvio que tinha ali uma ideia: que envolveria viagens intercontinentais e navios transatlânticos e cifras que acompanhariam essas proporções agigantadas, que perto da minha listinha mixuruca de lugares para conhecer um dia, talvez, se eu pensasse em sonho mesmo, era quase monstruosa. melhor não cutucar a fera, a gente só imagina o que pode. fora que tudo isso em um lugar frio, certo? congelante, desses que só se faz destino se você efetivamente está procurando por isso ou se tem tanto dinheiro que isso não importa. já eu, que se tudo der (muito) certo e ainda tiver uma (boa) dose de sorte, tenho mais uns três ou quatro outros destinos de grande porte pela vida afora e olhe lá, vamos ser sinceras: eu nunca sequer ousei pesquisar.
o fato que motivou todo este texto até aqui é que era um feriado, fazia um calor desproporcional para maio, e eu estava passando uma tarde agradabilíssima em uma praia desconhecida. próxima de são paulo, vale de dizer, o que configura outra espécie de sonho, daquela que a gente esquece que já nem pensou em sonhar um dia quando acontece; mas esse é outro texto. eis que fui interpelada pela simpática paula que, dentre cadeiras de praia, água de coco caipirinha cervejinha, banana boat e stand up paddle, me ofereceu numa lista decorada e com pouco entusiasmo, o passeio para ver baleias.
“avistamento de baleias”,
para ter mais apelo pros paulistas.
assim, num monólogo de três minutos, a paula me explicou com naturalidade que o fenômeno de reprodução das baleias que nessa época do ano procuram as águas mais quentes do nosso continente para se reproduzir e criar seus filhotes e ano passado foram avistadas mais de 700 baleias jubartes sem nenhum tipo de questionamento sobre o aquecimento global o risco de extinção o incômodo do seu habitat natural, e também que o passeio de lancha é mais confortável que o barco que sai em três horários de manhã em dois pontos específicos da praia e navega até alto mar e não se aproxima das baleias mas elas circulam o barco se der sorte dá pra ver também tubarão arraia outras espécies tem água inclusa você pode levar seu lanche custa quatrocentos e cinquenta reais por pessoa tem um voltando agora vamos? e assim, como quem lista os sabores de pastel, a paula tirou de mim toda a segurança da certeza de saber que jamais seria possível ver baleias de verdade e me deixou ali segurando um coco morno em uma mão, uma sacola de praia de possibilidades na outra e o abismo de ter que ser responsável eu mesma por decidir. de repente, eu me vi com a promessa palpável, na minha frente, de realizar um sonho. pior que isso: eu teria que lidar com ela. num feriado.
tipo: não era apenas a sentença monstruosa de adicionar cinco parcelas de noventa reais sem juros à montoeira de dívida que eu já não consigo dar conta; só se vive uma vez, baleias de verdade etc; mas eu poderia embarcar, enfrentar três horas de enjoo e mais quatrocentos e cinquenta reais de dívida e nunca encontrar uma baleia; eu poderia embarcar, enjoar e empobrecer e ter encontrado apenas uma baleia tímida dando um tchauzinho discreto com uma das nadadeiras; tudo isso e no passeio seguinte elas, no plural, pularem em bando, dando voltas, um show da natureza, diriam. eu poderia ver baleias e não ouvir nenhum som. imagina ver baleias silenciosas? e se eu sentisse medo, pânico, e não o arrebatamento divino que certamente eu sentiria? e se eu quisesse sair correndo dali, fugir, voltar pro chão, pro seco, pra terra? eu poderia ver baleias e no dia seguinte aparecerem também golfinhos, arraias, tubarões martelo. eu poderia ter um drone, uma gopro, um iphone 15. imagina se tudo isso e a baleia aparece do outro lado do barco enquanto eu me perco na minha cabeça?
de repente, me deram a responsabilidade de realizar um sonho.
e eu nem sei nadar.
parte 2
“sra. Isadora, infelizmente hoje não avistamos nenhuma baleia até agora, seria melhor cancelar o passeio e tentar novamente amanhã…”
amanhã eu já teria voltado.
parte 3
juntei na minha caixinha de contradições — você já viu a quantidade de self storages que estão construindo em são paulo? me parece urgente — então a única solução que me cabia enquanto espécie que se entende como superior: visitar bichos confinados. comportamento padrão causado pela culpa, eu sei, tipo o homem de bigode lendo bell hooks. caso você não tenha percebido até aqui, eu abri mão do meu pensamento crítico em prol de um textinho levemente engraçado e do que restou da minha sanidade mental: fluoxetina, cogumelos e ver animais em cativeiro, meu coquetel de sobrevivência. bebam água.
e ali eu fui feliz. genuinamente feliz. ridiculamente feliz, eu diria, mais feliz que as crianças que achavam a mesma quantidade de graça num mero albino de 350 quilos e no joguinho eletrônico da patrulha canina na praça de alimentação. certamente mais feliz que os pais dessas crianças que não se conformavam com a incapacidade de seus filhos se admirarem pela natureza: olha, maria júlia, o tamanho desse peixe! feliz como eu só achava que seria possível de ser em alto mar, em mar aberto, em uma lancha superfaturada cercada por baleias jubarte tentando sobreviver ao apocalipse climático e ter seus filhotes em paz na bahia. feliz e espantada como eu sempre achei que seria no dia em que realizasse um sonho.
quer dizer.
eu também senti várias outras coisas, é claro: dá pra imaginar a quantidade de gente babaca que teria na lancha pra avistamento de baleias? a cada passo que eu dava na direção de um novo ambiente que reproduzia com esmero as condições naturais de centenas de milhares de quilômetros de distância do ipiranga, a mão invisível da contradição me esmagava e eu tinha vontade de sair correndo e de escrever um texto pra duas mil pessoas me expondo; a cada criança que me esbarrava e ficava parada entre eu e a conexão inexplicável que eu estava tendo com um pinguim que não me enxergava através do vidro de 20 cm, eu me contorcia; a cada voz de adulto que chegava até meus ouvidos dizendo olha laura o bebê foca!!!!! quando com a mais absoluta nitidez estávamos diante de uma lontra alegre e brincalhona no seu recinto que reproduzia um riacho na floresta parece que nunca colecionaram as cartas do chocolate surpresa na vida não é possível, eu me enchia de mim mesma com o meu conhecimento irrisório sobre o mundo natural com petulância.
se bem que depois, pensando bem, pode ter sido uma ariranha.
uma das características mais especiais das animações do estúdio ghibli é a maneira particular com que cada uma das personagens corre: cada uma corre de uma forma específica, que transparece sua personalidade e o motivo da corrida. como se nesse momento de descontrole desse pra ser quem a gente realmente é. ou não desse mais pra esconder. daí que quando as setas todas terminaram de apontar pra direita onde se dizia “urso polar” e eu vi a maior coisa viva que já vi na minha vida, mergulhando, batendo as patas traseiras no chão e voltando pra superfície pra pegar ar a uns 30 centímetros do vidro onde se aglomeravam cerca de 300 crianças, consegui me observar por outra câmera (sabe, quando isso acontece?): eu corri de um jeito diferente. de um jeito que só corri naquele dia, do jeito que só se faz uma vez ou outra na vida. corri como quem descobre naquele exato momento que alguma coisa nunca nem imaginada antes é possível. e real. e tipo: era um urso polar. de verdade.
das coisas que eu nunca imaginei:
não dá pra chorar enquanto o coração sai pela boca e a boca não fecha, por mais que se tente.
um urso polar parece ser de duas a três vezes maior dentro d’água: do lado de fora, ainda é mais alto e largo que um carro; mas embaixo da superfície fluoretada cientificamente projetada pra reproduzir seu habitat natural das geleiras russas, ele é maior do que eu acho que seria um baleia. gigantesco.
dá pra continuar sendo profundamente triste mesmo vivendo nas condições ideais, num recinto pensado nos detalhes para simular a perfeição. com geleira e tudo. mesmo sendo a atração principal.
a gente precisa de dinheiro, muito, pra ver baleias de verdade. e ursos polares russos no ambiente climatizado em são paulo (menos). e se tivermos a preocupação de fazer essas coisas da maneira mais correta possível (sabendo que isso não existe), em proporções transcontinentais. do contrário, a gente faz o que pode e convive com as contradições do que tem; ou não faz, e lida com isso também. e sequer imagina que pode sonhar em ver baleias de verdade e tals. toda vez que eu vou a uma loja de plantas, me vem na cabeça a mesma imagem, o mote de um livro que eu nunca vou escrever: uma civilização distante nos observando juntar moedas para comprar pequenos vasos e rindo baixinho da ironia. o esforço patético em mantê-las vivas nas condições climáticas mais desfavoráveis que nós mesmos criamos. existe um parque de diversões no meio do estado de são paulo com centenas de milhares de quilômetros e estruturas transcontinentais que reproduz fielmente todos os biomas do mundo — todos!!! — tem até rinoceronte, roda gigante, montanha russa e experiências 7D (sete). e carrinhos de bebê disponíveis para aluguel a um preço módico. o ingresso custa mais de trezentos reais.
eu e meus bichos domésticos, que me salvam todos os dias. todos os dias, sem exceção: todos os dias eu tenho carinho indiscriminado, cuidado comigo e a obrigação do cuidado com o outro em proporções equilibradas, o lembrete insistente de me espreguiçar e buscar qualquer restiazinha de sol, e um motivo bem fedido pra levantar da cama. o cachorro preto igualzinho ao Cachorro Preto da Minha Infância que me abraçou com as duas patas em volta da cintura na frente do teatro outro dia; todos os nossos olhos, os quatro, cheio de lágrimas: não dá, eu não posso. mesmo. o medo da minha amiga em ser ela mesma um cavalo selvagem resgatado por uma atriz de hollywood, com trancinhas cor-de-rosa e cascos polidos pintados com esmalte. como é possível que alguém ache razoável a ideia de se domesticar cavalos? cavalos, entende. e gatos? os milhares de vídeos de onças tigres leões e outros felinos gigantes sendo exatamente o mesmo bicho que são nossos gatos de água tratada com flúor. a lontra é um tipo de gato da água, você já reparou? fato cientificamente provado. brincalhão, simpático, se amostrando pro público triste do outro lado do vidro, desesperado por atenção. gato escaldado.
parte 4
talassofobia é o termo mais adequado pra se referir ao medo do mar, massas de água vastas, escuras e profundas. medo da vastidão do oceano e das criaturas marinhas, e do fundo do mar. já megalofobia significa “medo das coisas grandes”; pra pessoas, um pavor específico de algo que pareça muito maior do que ela, como prédios muito altos, estátuas gigantes, navios transatlânticos ou baleias. eu já acho uma grande bobagem que a gente precise dar nomes científicos aos sentimentos mais obviamente comuns, como se fosse preciso catalogá-los pra que passem a ter validade.
tipo, precisa?
te entrego
contra o foco: é tudo uma questão de mar e imensidão, edição antiga da newsletter da vanessa guedes.
expansão marítima, o novo e aterrador livro da taís bravo, e águas vivas não sabem de si, o livro da aline valek.
é nesse nível aqui, gente:
sabe?
Sempre te leio no momento certo. Amei! Minha esposa tem o sonho de ver de perto uma baleia em alto mar e agora estou com essas dúvidas todas que não tinha antes de pensar sobre como é assustador ter a oportunidade de realizar um sonho!
Certamente já vistes a foto do Humberto Baddini da jubarte no Rio né? Mas caso ainda não, deixo o link aqui que é para um avistamento virtual.
https://www.instagram.com/p/C8nUFTCPdEw/?igsh=MWNyMHd4bzhyYTgwOA==
Um beijão Isadora e obrigada por escrever!
que texto gostoso de ler <3 eu, como pessoa vegana, acho muito saudável a gente discutir questões sobre acesso e os lugares onde os animais estão.
obrigada por essa edição, isadora!