esse ano eu fiz o que foi preciso.
e como tudo o que eu me proponho a fazer com empenho, fiz extremamente bem feito, daquele jeito assustadoramente neurótico que só quem sabe que não tem outra escolha faz. esse ano eu comprovei mais uma vez — não que precisasse, mas a gente esquece — o peso denso das minhas escolhas, de um jeito triste e bem pedra-pedra, pragmático como a minha constituição detesta, óleo de fazer motor andar e água de ficar boiando. mas fiz. brigamos até onde deu, esperneei, não teve jeito: naquele ou-faz-ou-faz, tinha que dar certo, não tinha também pra onde voltar. não teve espaço ou respiro, não teve mergulho também: teve caminho reto, planejado, 9h às 18h; foram metas cumpridas, listas ticadas e projetos entregues; com louvor.
não é pouco. tenho em mim essa frustração de artista tendência de desvalorizar o que é o cotidiano, enxergo em cores pasteis a beleza da rotina, a potência da mediocridade. pode chamar também de inveja de gente rica que pode viver de arte-sonho-propósito, funciona. eu sei que eu poderia ser muito, tão mais, se não tivesse que fazer coisas tão simplórias quanto trabalhar para garantir minha sobrevivência. o que, especialmente nesse ano que passou, me deixou num estado contínuo e paralisante de raiva do mundo, além de autodepreciação — e não do tipo engraçadinha.
por outro lado, se tiro por 10 segundos esse óculos pedante, é fácil de perceber a montanha que subi carregando um uninho mille nas costas pra estar aqui, hoje, desse jeito. venho repetindo como mantra mesmo, até grudar na parede de dentro da cabeça: olha tudo o que você fez; olha tudo o que você fez, garota. olha onde você estava há não tanto tempo assim e olha onde você está hoje. o que machuca mais é que o “onde você está hoje” ainda é duro, meio cinza e, por fim, insuficiente. essa constante sensação e desde sempre há tanto tempo de “quando eu chegar lá vai ser mais calmo/tranquilo/fácil e, portanto, feliz”. e esse lá que nunca chega, né. e esse lá que vem a que custo?
de vez em quando deus me tira a poesia.
olho pedra, vejo pedra mesmo.da adélia prado, num post-it grudado na parede ao lado do meu computador.
mas, então, dando uma chance e acreditando naquela outra máxima que eu sempre repito pra mim, a da importância de verbalizar: que puta orgulho do que eu fiz, no tempo que fiz, da maneira que fiz. que monstruosidade que foi mudar completamente de vida em todos os âmbitos que vocês podem — e só vão isso mesmo — imaginar, do momento em que decidi (ou percebi que era a única escolha) (ou percebi que era a única escolha e decidi tomá-la) fazer cada uma das mudanças até agora em que eu consigo olhar e dizer: bom, eu fiz isso mesmo. e é aqui que eu estou.
é engraçado que uma das coisas que mudei ativamente e de maneira radical na vida foi a rotina de exercícios, intensa e neuroticamente regrada, o que me fez chegar no fim do ano assim: fortona. ombrinho de cebola, trapézio ascendente, a meta é que ano que vem vocês se refiram a mim como “ali, do lado daquela mina esquisita". bruta. um pônei (não dá pra falar cavala sendo do meu tamanho), mas na real, me sinto uma tartaruguinha; criando casco. não foi intencional, sequer foi consciente até agora, mas como são misteriosos os caminhos da mente né risos: bancando o peso denso de cada uma das minhas escolhas. carregando minha casa nas costas. chega de metáforas, que cafona.
escrevendo(!), tudo isso até parece bom, mas o problema é o contexto: essa máquina de moer gente em que a gente vive, em que derrubar um ou dois pratinhos, ou cinco ou seis (ou, no meu neurótico caso, guardar milimetricamente cada um dos pratinhos no armário, etiquetados e embrulhados em plástico bolha), significa silenciar partes importantes — talvez as mais profundas. certamente as mais bonitas. pra deixar de ver cinza, pra enxergar além da pedra, a gente precisa de tempo. de espaço. de menos planos, eu acho. ou de mais planos pra ter mais tempo e mais espaço.
esse ano eu fiz o que foi preciso, perfeitamente bem, mas teve pouco de mim. não escrevi, não li, não estudei; sequer consegui dizer do que eu gostei (exceto os shows do Sesc, deus abençoe os shows do Sesc!) ou sobre aquilo que me compôs. sabe, aquilo do que a gente é feita? nos dois últimos meses, movida pela angústia alucinante de perceber isso, fiz tudo de uma vez: pintei paredes, comecei livros, ouvi músicas repetidas, assisti séries já vistas, olhei pra mim com uma lupa e em cada detalhe assustador. que horror. foi bonito perceber alguma possibilidade de caminho de reencontro, como se eu tivesse há muito tempo preparado bem o terreno pra essa versão de agora: olha, gata, calma que tá aqui. vai por aqui que vai ser melhor.
Tudo isso me fez perceber que não existe um vão entre quem eu fui e quem eu sou. Ao longo desses dias, enxerguei ou inventei uma continuidade. E experimentei uma espécie de sossego, uma confiança em mim. Uma sensação de que dá para atravessar períodos de ruptura e ainda assim conseguir, eventualmente, voltar para buscar o que é meu.
o que significa voltar? da taís bravo.
esse ano eu também deixei que as outras pessoas me dissessem quem eu sou: de um jeito horrível. ao contrário do que descobri nos últimos anos antes deste, não com generosidade, não de peito aberto, mas num encontro feio e dolorido entre o pior delas e o pior de mim. abri espaço nesse descompasso todo, nesse profundo desconhecimento, na falta de poder bater o pé: não senhora, essa é você, não eu. mais de uma vez me vi sendo colocada em lugares e posições que nunca quis (ou que lutei com empenho pra não estar nunca mais) e, bom, aceitei. me deram o papel e eu fui lá e fiz — já disse como? brilhantemente bem. ganhei uns oscars, até. não quero mais. como se nesse vazio profundo eu precisasse de alguém pra me dizer quem eu sou, onde eu devo ficar, o que eu devo fazer, com quem eu devo interagir. essa é sua marcação, e agora você está com raiva: grite com ele! já que eu não tinha muita coisa, mesmo, aceitei o que me deram.
esse ano, no final, eu fiz o que foi preciso — por mim. a dedicação excepcional ao trabalho, à rotina de exercícios físicos, ao que eu deveria fazer para me manter viva, bem, funcional, menos doida/doída. um corte de cabelo maravilhoso, o tanto quanto foi possível de sol, roupas bonitas pra um coração tristonho. estratégias pragmáticas para uma sobrevivência com mais cor. minha casa e sua coleção 150% nada prática de cacarecos, os bichos que dividem a vida comigo, os amores que ficaram, apesar de tudo. apesar de tudo, encontrar no cotidiano alguma felicidade, vontade e tesão. porque tem que ter. e tem. acho.
eu sei o caminho. e eu sei também da beleza que é não se apegar a ele, mas talvez agora a melhor coisa a se fazer seja justamente essa, retornar. revisitar lugares, espaços, tempos, pessoas, palavras e ideias que me trouxeram até aqui, com um olhar renovado e mais carinhoso, um lembrete: foi você quem bordou tudo isso. à mão. durante todo esse tempo. adicionando uns balangandãs, colocando umas lantejoulas, refazendo uns pontos que soltaram, outros que precisaram ser cortados, mesmo. mas agora é — tem que ser, finalmente — hora de enfeitar.
então, algo assim:
equilibrar melhor o peso dos dias. andar mais de bicicleta. voltar a estudar alguma coisa — qualquer coisa. ficar mais esquisita. escutar e, se der, fazer música. voltar a gostar de mim, nem que seja um pouquinho.
te amo tanto
"esse ano eu fiz o que foi preciso, perfeitamente bem, mas teve pouco de mim.", exatamente isso.
obrigada por compartilhar e me ajudar nesse processo de me entender também.