1.
tive aquelas férias estranhas entre a saída de um trabalho e o início de outro e fiz a única coisa possível: mais tatuagens. quatro, pra ser exata; um exagero ou um pedido de socorro, fica a seu critério — vou poupar esse texto de qualquer metáfora sobre preencher buracos. vamos falar aqui especificamente sobre a dimensão física da coisa: cinco horas sendo lembrada da maneira mais tangível que meu corpo existe.
2.
cê já parou pra pensar nisso? eu pensei, por longas quase cinco horas sendo lembrada de que meu corpo existe: que grande viagem é ter um corpo. não é? não sei se você já fez uma tatuagem (embora eu espere do fundo do meu coração que o público dessa newsletter seja composto em sua grande maioria por pessoas consideravelmente tatuadas), mas rola um quê meio místico, mesmo. deve ter um monte de literatura a respeito: o simbolismo, a questão ritual de ficar imóvel por horas enquanto outra pessoa te risca com uma agulha ou mais, o potencial mântrico (gostaro?) da parada. na grande maioria das vezes, em silêncio, a não ser que a pessoa com que você tatue seja meio maluca ou totalmente bruxona. ainda assim, deixa eu te contar: dói. e quando dói, quase sempre, você não consegue mais falar.
3.
um dos meus traços mais tóxicos é que eu repito em voz alta com alguma frequência que eu não sinto muita dor — física. ou vai ver que eu sei lidar bastante bem com a dor — física. por exemplo, e não estou me gabando (em voz alta!!!!): eu durmo ao ser tatuada. também já senti cócegas algumas vezes e, em outras, uma sensação muito engraçada de que o desenho está sendo feito no lugar errado: muito maior, muito menor, muito deslocado, fora de lugar. como se a dor me desse uma dimensão muito maior ou muito menor do meu próprio corpo.
4.
(eu também dou uns gemidos bem altos na academia e bufo na hora de largar os pesos no chão).
5.
exceto quando chega perto do cotovelo, aí não tem pensamento quântico que me distraia. que ideia de merda tatuar os cotovelos, cacete de agulha.
6.
cinco horas disso dentro da minha cabecinha: eu tenho um corpo. eu não sou só um punhado de aflições e sentimentos, uma ideia, um conceito, um monte de água espalhada num potinho pequeno demais pra caber. eu tenho um corpo, que existe nesse mundo que tem agulhas, macas, quadros coloridos de artistas talentosos, salas em prédios no bom retiro, vistas para os prédios que eu insisto em achar bonitos, pessoas que eu conheci no caminho e insistem em me contar — sem a menor consciência disso — como me enxergam. como é esse meu corpo no mundo, claro, mas também descrever esse conceito abstrato de mim, dizer como é se sentir ao meu lado. nem que seja só por cinco horas.
7.
eu tenho um corpo, e isso muda a dimensão da dor.
8.
tem essa outra dimensão aliás: a minúscula, que é ainda menor considerando o meu tamanho (sem metáforas autodepreciativas, eu sou realmente muito pequena). deitada na maca na sala no prédio no bom retiro cercada por quadros de artistas talentosos eu me dei conta de que praticamente tudo o que acontecia ali, naquele tempo, naquelas quase cinco horas, foram decisões que eu tomei pelo meu corpo. veja, a dor não vinha só das agulhas: doíam também minhas costas, embaixo, pela posição em que estava deitada, em cima, pra manter o pescoço virado e imóvel, o quadril, que nunca encaixou exatamente certo. os joelhos, porque sempre doem, o ombro, e essa dor é nova — autoinflingida, ou você acha que tinha alguma possibilidade de eu não me machucar carregando tudo isso?
tomar decisões por esse corpo, as conscientes. haverão sinais: massagem toda semana, meu Dia da Massagem, não me liguem. comprar o creme cheiroso e o óleo de banho. beber mais água, muita água, como se pra compensar a que falta dentro. levantar pesos desproporcionais ao meu tamanho, que me fazem urrar de dor e perder os traços que me trouxeram até aqui.
me retirar.
desaprender todas as decisões que tomaram por esse corpo até aqui.
9.
eu sempre soube o que era, me acompanhou desde que tive alguma percepção efetiva sobre mim e minha existência física no mundo. ainda não tinha nome, é claro, imagina só. pelo contrário: não precisava de nenhuma diferenciação, nenhuma distância do corriqueiro, uma vez que me olhava no espelho ou para baixo ou para o lado e naturalmente todas as vozes, sem exceção, diziam que ainda faltava um pouco. às vezes muito— aí era de surpresa mesmo.
10.
percepção alterada de imagem, só um tempão depois acompanhada da tenebrosa condição de distúrbio, a coisa mais engraçada de todas é que é uma dessas que você meio que não sabe que tem. sabe? se aquela é sua realidade, se tudo o que comprova uma existência material, subjetiva, emocional, quântica te apresenta provando por a+b que você é aquilo ali, saber que não é — ou ouvir dizer que não é, ainda sem acreditar — me parece mais um fardo do que um diagnóstico? um filme meio ruim, daqueles que revelam lá pela metade que tudo o que a gente assistiu até ali não era bem verdade, nem pro espectador, nem pra atriz. muito black mirror.
11.
tem seu charme.
12.
eu vim pra esse mundo com um metro e meio, e isso diz tanto. ao menos, é o que eu quero acreditar. e o que eu uso de desculpa.
13.
lembro de todas as piadas na época das olimpíadas sobre o tamanho das meninas da ginástica: entre elas, com pessoas normais, com os gigantes do basquete ou do vôlei. a proporção assustadora de músculos e gordura corporal em pedaços tão minúsculos de corpinhos milimetricamente esculpidos para fazerem o que fazem com excelência — com o adicional do carisma insuportável. a perfeição. me dei conta que temos exatamente os mesmos tamanhos. é assim que as pessoas me vêem no mundo real.
14.
tenho me colocado na rua, eu e minhas quatro nova tatuagens, e aceitado os olhares dos que me enxergam de fora pra dentro (quando eu deixo). ouvir e receber sobre mim através dos olhos dos outros, descobrir como as pessoas me vêem no mundo real.
15.
🤏🏼
16.
no fim, eu acho, o que eu sempre quis foi que me corpo desaparecesse no meio daqueles outros, mais um ali na massaroca indistinta que sempre cativou o meu tesão. ser como eles, mais um, já que são todos tão absolutamente iguais; não existir mais nada que denunciasse a minha ousadia de tentar fazer parte.
17.
te vi logo de cara. nunca te vi aqui antes. dava pra te achar de longe. você é muito diferente. você é a cara deles. eles são a sua cara. olha aqui: me inspirei em você. onde você compra suas roupas? cortei meu cabelo igual ao seu. achei que ia te encontrar lá. o que você está fazendo aqui. esse é meu espaço. você está exagerando. nunca vi alguém com tanta energia. nunca vi você com tanta energia. é que seu jeito faz com que as pessoas tomem certas liberdades. é que teu jeito pode incomodar.
18.
sempre demorei alguns minutos a mais pra me encontrar toda vez que recebia as fotos.
19.
ainda tem muito espaço pra preencher. ainda que doa, cabe.
clube das mulheres de um metro e meio que dormem durante as tatuagens, que esquecem que não são um conceito abstrato e ficam viajando quando lembram que são um corpo <3
caramba, parece eu, rs.
Sempre que faço uma nova tatuagem, sinto que minhas armaduras aumentaram (como num vídeo game onde você escolhe seu próprio personagem).
Vivas as mulheres de um metro e meio que não sentem dor - física.