1.
grande.
2.
contei outro dia que o remédio pra cabeça me fez voltar a sonhar — “me devolveu a capacidade de sonhar” eu diria se fosse cafona, mas não sou. claro que não sou. percebi que há um tempão não sonhava ou, pelo menos, não me lembrava dos sonhos.
3.
aliás, tem uma diferença. não tem? percebi agora. sonhar, acordar e se lembrar do que sonhou; outra coisa é estar dentro do sonho, viver ali por um pedaço de tempo até acordar. às vezes até nem se lembra do que viveu, só se sente um pouco.
tenho certeza que tem diferença.
4.
cês também têm uns dois ou três sonhos repetidos, tipo sonhos-assinatura? eu tenho, desde criança. um deles é O Sonho da Onda Gigante, em que estamos em uma praia eu, minha mãe e minha tia, irmã dela. é uma versão jovem das duas, que têm dez anos de diferença entre elas e mais uns trinta de mim: a imagem que eu tenho das fotos que sempre peço pra ver de novo e novo, a despeito da falta de paciência em pegar, descer e abrir cada um dos álbuns, como se eu já não tivesse decorado em qual estão. aquela imagem das duas bronzeadíssimas de coca-cola, dois corpinhos minúsculos e magros, muito magros, como o meu nunca chegou a ser. nunca perguntei quando foi que uma parou de se deixar ser fotografada como atriz de cinema safada nem quando a outra operou o nariz da família. nunca as conheci assim, claro, mas em algum lugar sempre vão ter tom de papel de foto antigo, cheiro de permanente e coca-cola.
estamos na praia, eu e minhas duas amigas geniais. em alguns dias, eu digo que quero comer milho; em outros, me levanto eu mesma pra comprar — engraçado que só descobri o prazer de comer milho na praia depois de muito adulta. nunca tem picolé de uva no sonho, meu grande favorito da infância, de melar a boca, as mãos e a barriga, até ter que se lavar de novo, nós já estamos indo embora, isadora. não tenho quase nenhuma lembrança de estar na praia, aliás, praia-praia mesmo. lembro do corrimão vermelho típico dos prédios do pobre litoral sul; lembro da característica garagem descoberta, dos pilares quadrados, das bundas quadradas dos carros, dos pisos e paredes de azulejos quadrados todos da mesma cor. lembro de me esconder na escada de incêndio pra ganhar um beijo, o segundo ou terceiro, eu acho, lembro do primeiro menino por quem me apaixonei e que me dispensou (era feio). lembro de estar sempre tentando me cobrir, um mostra e esconde delicado e violento prum corpo tão pequeno em idade e dimensões, e lembro também de nunca caber direito em nenhum biquíni quando ainda não era uma coisa comprar peças separadas: sobrava ou faltava, sempre, um chororô tremendo. ao contrário das fotos cor de coca-cola, cheias de malas, sacolas, primos, bichos e adultos de cara fechada, não tenho nenhuma memória de família, exceto do toque firme dos pés enroscados como se fossem mãos dadas na hora de dormir. até hoje, meu carinho favorito; até hoje, não sei com quem dormia assim.
estamos na praia, eu e minhas duas amigas regulando idade, vez ou outra bandejas de milho, manteiga e sal, às vezes até uma caipirinha — que eu não bebo. conversamos, outra coisa da qual não tenho memória, mas tudo parece comum e corriqueiro, até meio monótono; o bafo do sol que nunca é muito forte porque esse meu sonho tem um filtro nublado. sépia, se eu fosse cafona. a onda nunca vem em tom de desespero, pelo contrário: vai nascendo calma no horizonte e sempre comentamos “olha, lá vem ela", não como uma música do jorge ben, mas como uma prece aguardada. enfim chegou. demora um tempo até chegar na praia: cresce grandona, desenrolando tipo massa de pão sovada, se dobrando e se engolindo, e não leva nada até a beirada, nem sequer um surfistinha de santos. também não faz barulho. quando encontra com a areia, puxa a gente por baixo com delicadeza e levanta, ergue quase sem molhar. tem uma cena de alladin (o desenho, por favor) que dá pra sentir exatamente a mesma sensação, não sei ao certo se Uma Grande Onda, o tapete voador, algum feitiço do jafar, mas tem; eu teria que assistir de novo. em nenhum momento a gente se assusta, grita ou se separa, e nessa hora o sonho ganha uns tons de rosa e lilás, tipo o sol se pondo em salvador ou a parede holográfica que separa as pessoas em casamento às cegas quando alguém se apaixona. o sonho nunca acaba aí; mas eu também nunca me lembro o que vem depois.
5.
teve gente que veio me dizer que é normal começar a ter uns sonhos bizarros grandiosos com a medicação. quer dizer: nem um sintoma muy especial e próprio eu tou autorizada a ter. sabe, cafona.
6.
eu sei que tem por aí alguma sabedoria milenar que explica tudo: pesquisas etnográficas, livros vermelhos, cursos no hotmart de alguma mana de franja curtinha. mas assim, obviamente: se tá dentro da minha cabeça é porque existe. não é?
7.
coloquei o diu esses tempos.
[aqui uma pausa pra eu te contar que toda vez que vou falar sobre isso, eu digo que instalei o diu].
algum resquício de mana de franjinha que mora em mim achou uma boa ideia (idiota, absolutamente idiota) instalar o diu sem anestesia, sei lá, resgatar alguma conexão ancestral (era mais barato). fomos lá eu, minha camiseta do djavan e meu toragesic cheios de certeza e coragem.
na bula dizia que um dos efeitos poderia ser “sonhos vívidos". dei risada, não via a hora.
não sonhei nada.
8.
meu subconsciente (ou esse é o inconsciente?) nunca me deu nenhum trabalho. meus sonhos sempre foram absolutamente simples e sem espaço pra interpretações. amizade terminada sem saber o motivo? sonho que estou roubando tudo da casa da pessoa, inclusive os gatos. sonho que estou sem roupa em locais públicos não carnavalescos, que bato em quem eu sempre quis até passar, que não consigo falar por mais que tente, que fujo, fujo, corro, até encontrar a pracinha do lado de casa mas que é uma floresta.
esses dias sonhei tanto que acordei ensanguentada.
9.
também sonhei que escrevia essa newsletter. juro.
10.
quer dizer, era um texto corrido, dessas que me dão saudade de que escrever (sinto que as listas são a prova cabal de que fiquei mais burra). era uma coisa de uns 4 ou 5 parágrafos longos, sem pontuação clara, e lembro da sensação constante de estar em briga comigo mesma: termina, não precisa de mais nada, continua, escreve mais, escreve. sem ponto final, toda saramaga ela.
11.
sonhei que exu matava minha mãe. sonhei que minha mãe era um bichinho de plástico de padaria que nunca se rompia. sonhei com o menino que eu gostava no prézinho. sonhei com o hotel fazenda da infância. sonhei com as minhas amigas da adolescência e todas elas falavam de seus filhos, os que existiam e os que ainda não. sonhei com todas as coisas que aconteceram só na minha cabeça, e com todas as que você me disse que só tinham acontecido na minha cabeça.
não resolveu nada.
12.
eu procurei ajuda médica primeiro porque não conseguia mais dormir. depois, por não conseguir mais acordar.
13.
esses dias sonhei que uma onda gigante — não sei se a mesma — varria todo um bloco de carnaval enquanto eu observava.
de camarote.
14.
agora eu sonho grande.
Nunca tinha pensado na expressão sonhos-assinatura, mas os meus sonhos repetidos fazem sentido assim: sempre sonho que vou chegar atrasada. Ansiosa até dormindo.
sonho-assinatura, é isso!