sempre ficam as coisas de quem a gente cruza. outro dia há uns três anos trombei com um vídeo que falava sobre se ter aprendido a gostar de risoto de camarão com um ex. tá, era mais profundo e bonito que isso, mas sempre fica alguma coisa: o risoto de camarão, e eu nem como, a capacidade de poder baixar a guarda ou um trauma. sempre uma dessas três coisas, tenho certeza. de uma dessas pessoas que passou lembrei esses dias do projeto pessoal de, num calendário grandão de página amarelada, anotar o que tinha sido bom daquele dia, todo dia — há anos —, como fazia questão de me dizer com o orgulho persistente dos projetos grandiosos ao que os homens ousam se dedicar. não preciso dizer aqui, e não vou dar essa de lambuja, que, proporcionalmente, não encontrei meu nome vezes o suficiente pra ficar algo além da ideia dO Projeto, uma boa indicação de filme e, claro, um trauma — esse, menos dos que os que eu vou explanar aqui.
ganhei um calendário grande, desses de páginas em papel caro e confortável e ilustrações bonitas e misteriosas, antes que eu pudesse ir eu mesma atrás de um pra chamar de projeto também. melhor assim, dependente adepta que sou dos sinais, logo coloquei na parede, e antes do ano passado acabar eu já previa o que anotar ali; as coisas adiante: as férias, o descanso, o sol, as viagens, o carnaval. vai ser bom, vai ser melhor, agora passou, agora vai. teve até meme, acho que até postei. não preciso explicar que cozinhei a receita perfeita pro combinado entre ansiedade e frustração, temperado com uma dose cavalar do comportamento absolutamente delusional que, parece, é o último que nos resta.
ainda: tenho ouvido esses tempos as pessoas falarem, acho que mais que antes, sobre a tal do esforço de romantizar a própria vida — vale dizer que eu tenho total e absoluto pavor do que fizeram com (mais essa) palavra, romantizar. me parece não só que faz muito sentido, o de buscar alguma beleza já que estamos obrigados a viver durante o colapso total da humanidade como conhecemos, mas pra além disso, que lembrei que é essa uma das minhas estratégias de sobrevivência preferidas. a mais antiga, ainda, e a que eu melhor executo. tenho lido posts ruins e outros nem tanto que incentivam daquela forma da internet, com verbos no imperativo e frases curtas sobre ações aparentemente banais, num fundo de cor vibrante (acabou-se o reinado dos tons pastéis, ainda bem): acenda uma vela, dance na sala, dê-se um presente. é difícil, como tudo que existe — e todo esse blabláblá desse texto todo só acontece por causa exatamente disso — diferenciar a autoindulgência gostosinha do dia a dia à beira da exaustão no colapso do capitalismo tardio de uma postura mais próxima da dissociação completa, mas alguém realmente se importa? eu não, com certeza. delusional, lembra?
já que tudo hoje em dia precisa fazer parte de alguma grande onda coletiva pra gente se individualizar cada vez mais e se distanciar com força do contexto social que realmente nos uniria nessa loucura, posso dizer que o que mais me pega nesse movimento é uma segunda camada que nem sempre fica tão explícita, mas a meu ver, é mais bonita: da possibilidade, motivada, da gente poder se apropriar das nossas narrativas. sinta-se a personagem principal diz uma das coisas nada boas que eu li. e tá certo que estamos num momento meio saturado de personagens principais dolorosamente parecidas com a gente de verdade, menos idealizadas e mais loucas, menos ou-isso-ou-aquilo e mais horrorosas por dentro (sem ser por fora, porque aí já é demais né), mais cagadas, destruídas, deprimidas, mergulhadas no humor autodepreciativo e muito donas de si — essa geração que desistiu do amor por causa do padre gato: a gente. tá certo que já estamos devidamente representadas por atrizes magras e herdeiras e que fazem cerâmica e que pautam suas angústias em relacionamentos afetivos-sexuais muito libres, mas não em boletos, mas que vejam só, nos dão gentilmente a possibilidade da gente se enxergar enquanto, bom, personagens principais. ainda assim, cês já pararam pra pensar nisso, tipo, de verdade?
esses dias uma amiga me contou que estabelece temas anuais pro processo terapêutico dela e eu fiquei com isso martelando minha cabeça até o clique pra escrever esse texto: me sentir a personagem principal talvez seja o meu mote, há anos. me apoderar da minha própria narrativa, também. e esse é um vespeiro que eu só vou mexer em situações não registradas e privadas a pedido do meu advogado, mas o lance é que eu acho que ninguém tá fazendo terapia direito. a vibe “terapia em dia” e gente que gosta de entrar na sessão e fica feliz quando sai me dá um pavorzinho e acende imediatamente um holofote de p-e-r-i-g-o, porque cês vejam: se conhecer é horrível, né? eu podia aqui contar que me empossar maneiras de evitar a palavra empoderar da minha história é bonito, feminista heh, um ato revolucionário uh, mas na realidade é um job de corno e um trabalho de sísifo #culta porque isso só quer dizer que a responsabilidade dessa parada toda é minha, meus amores.
(é sua também).
entende? ah mas porque fulano fez tal coisa comigo; horrível, poxa, que grande cuzão, mas e daí? como você lidou? porque você deixou? o que isso te conta sobre você? qual sua responsabilidade nisso? boas-vindas ao meu cursinho de psicologia tirado do meu cy. 10 coisas que aprendi na terapia. uma frase de efeito em cores vibrantes aqui. um livro de capa bonita pra compartilhar no instagram.
o que você tem feito da sua própria vida? conforme eu ouvi outro dia através de uma mensagem que nem de gente viva veio, hehe, e essa coisa de realmente pegar a vida pelo chifre e fazer um carinho porque eu sou vegana. abraçar o chifre, se enrolar com o boi, viver todos juntos numa agrofloresta, talvez. bonita as foto, mas catar cocô de boi, imagina? ter responsabilidade sobre a nossa vida é, ao mesmo tempo, a única coisa que a gente pode fazer e, puxa, a única coisa que a gente pode fazer. que grande inferno. então se a alternativa ou a única estratégia possível é comprar flores e dançar na sala fazer exercício físico e repetir a respiração alternada à exaustão pra impedir de mandar alguém tomar no cy, bom, a novidade: é você mesma que tem que ir comprar as flores #culta, botar a música pra tocar e esmigalhar lembrança por lembrança de abandono e indiferença que justifique seu comportamento obcecado pelo o que falta, hoje, gata. e depois fazer alguma coisa com isso tudo.
éeeeeee gata. (lê-se: réeeeeeeeeeeeee ga-tam.)
“essa é a sua vida, não deixe ninguém tirar isso de você", seguia o post, ou outro que não me lembro bem, desculpem a falta de referência, eu surtei. no mesmo passo que a intervenção conversa que tive outro dia com outra amiga (deus abençoe as amigas, né, gente) que insistentemente me fez segurar o bando de tralha bonita que eu juntei na minha casa — curadoria, se eu fosse herdeira — e repetir em voz alta “você já chegou aqui, você já fez tudo isso, você já tem essa vida, olha pra tudo o que você já fez". os bonequinho de cerâmica sem entender nada olhando um pro outro: "ala, coitada, enlouqueceu de vez”. quer dizer, essa, eu notei em meio ao último colapso nervoso, é uma outra parte bem cruel disso tudo (o quê?) que eu ainda não tinha percebido: eu sequer sinto que eu estou mesmo vivendo a vida que eu tenho.
eu sinto, é claro, inclusive de maneiras muito perceptíveis como a bursite ardida no ombro e a tendinite no punho e as olheiras que nem intervenção cirúrgica resolve e, bom, essa newsletter. e, com a pontinha do nariz pra fora da coitadolândia, também consigo observar com bastante nitidez tudo de maravilhoso que me rodeia, incluindo a cacetada de privilégio que é preciso pra chegar a esse tipo de surto reflexão (sim, eu também surto por causa disso, é ótimo). é claro que tem algo de bom sempre, todo dia. é claro que tem, ainda que a gente não veja. ainda que tenham dias que pareçam intermináveis e que a ideia de que existem moléculas de serotonina seja tão absurda quanto a terra plana. ainda que mercúrio esteja retrógrado. são nesses dias que a estratégia ancestral de dissociar funciona, é pra isso que serve enfeitar a vida com flores, dancinhas no tapete da sala, taças de vinho rosé e séries sobre gente bombada competindo pra ver quem é a mais forte. valorizar o caminho pra chegar até aqui. prestar atenção, no fim das contas.
mas tem um outro lado (não que eu tenha determinado um primeiro) mais pesado e bem menos bonitinho que é o da minha necessidade obsessiva de registrar tudo — e aí sim entra O Projeto, quer dizer, o fiasco do projeto. esses dias caiu a ficha que, de forma bem crua: eu preciso registrar pra acreditar que eu vivi. se essa é (mais) uma artimanha da Sociedade Em Que Vivemos? provavelmente. se a gente que aprendeu a ser protagonista com uma herdeira magra filha de artista com roupas estilosas só entende que é real aquilo que está na internet, compartilhado, curtido, visualizado? aham. mas tem também uma dimensão bem subjetiva — e bastante triste de admitir — que é a que eu não consigo acreditar de verdade que tanta coisa legal tenha acontecido. comigo. "acontecido" as in vivido, conquistado, agarrado a unha, ou ainda: de eu não ser capaz de acreditar que eu possa realmente ter capinado um lote pra me dar a vida que eu tenho hoje, cheia de drama, mas também cheia de beleza. minha. mi-nha. é quase como se eu olhasse pra moça bonita das cores e plantas e gatos e livros e cacarecos pendurados na parede #curadoria e pessoas e sol no feed de um instagram qualquer e falasse: que moça legal, que bacana ela parece ser, pô, ela merece tudo de bom. belos quadríceps também.
a moça sou eu. né?
tem muito pouco a ver com a interação das pessoas — mas tem sempre tudo a ver com a validação das pessoas, xiu —, e muito mais com a maneira como enxergo as possibilidades que eu poderia ter. não é (só) FOMO ou um medo de sumir: é bem mais um pavor de não ter sido verdade. de ter acontecido apenas na minha cabeça. de eu ter sonhado com aquilo. a grande loucura no final das contas é: pra quem é que eu tou tentando provar isso no final do dia? se eu sou a personagem principal e também a narradora em primeira pessoa, além de eu mesma cantarolar minhas próprias canções originais subindo escadas de prateleiras infinitas em bibliotecas circulares, minha filha: qual é teu ponto? você está mesmo fazendo tudo o que é possível. entende? tudo-o-que-é-possível.
responsabilidade é foda.
mas então, O Projeto, cês lembram? esse mês não teve nada: não marquei as coisas boas, os dias tão lá vazios todos tristes, o papel bonito; sequer teve uma foto, parece que roubaram meu celular (isola!). fiquei doente mentalmente fisicamente ontologicamente e até socialmente e surtei. tive que pedir ajuda e tive também que ajudar, provavelmente vou ter que continuar, aliás. passei se-ma-nas em silêncio, num hiato horroroso de esperar e esperar e esperar: conversas, coisas, fatos, acontecimentos, sensações, qualquer coisa que me tirasse desse estado de suspensão e angústia.
março, pela primeira vez em trinta e cinco anos, fez calor: e eu sei que já escrevi sobre a primeira vez que fez sol em dezoito de março, como um presente, mas esse ano eu não preciso nem da pesquisa no google pra defender meu ponto: dessa vez, em março, fez calor: um calor que mais parecia uma ameaça mas, ainda assim, calor. e se eu posso me dar de presente um mês de egoísmo durante a destruição ambiental: fez calor no meu mês e até agora faz sol. e logo eu, risos, que de tudo-tudo mesmo nunca duvidei disso, em retrospectiva, não fiz nada com meu presente. também não comemorei, deixei passar abraços e outras celebrações individuais; momentos de protagonismo que — pelo menos — esses dias permitem, exigem, quase. me senti cinza e sozinha, e colecionei felicitações não recebidas, palavras não ditas, falta e mais falta. aquilo que eu sempre achei que me cabia: nada. não teve nada. doeu uma dor conhecida e antiga.
um aniversário em silêncio e sem ver brilho beleza gente. achando sem graça a comida premiada sem graça a exposição na pinacoteca — a ousadia! — as mesmas pessoas de sempre que podem fazer as mesmas coisas de sempre e eu numa folga ousei invadir o espaço daquele grupo de mulheres que às segundas-feiras visitam exposições para aprender sobre outras mulheres que às segundas-feiras fazem arte. em paris. um prédio no centro ocupado por um bando de gente que às segundas-feiras faz arte no centro de são paulo e reivindica espaços e usa palavras como reivindicar, espaços, ocupar, resistir, atravessar e certamente tem uma lista de outras palavras que vão lançar como tendência no próximo ano junto de uma cor sem nenhuma partícula de vida. o menor preço de qualquer coisa ali é trezentos e oitenta e nove reais. trezentos e oitenta e nove reais.
— nossa, eu não te reconheci como você está diferente!
como você está diferente.
te entrego:
como vocês certamente perceberam, eu voltei a ser #culta e até filmes eu assisti!!!!!! ficam então as recomendações atrasadíssimas de pobres criaturas (o tanto que eu fiquei grata pela tradução usar “criaturas” <3), que orgasmo esse filme, e anatomia de uma queda, fazia tempo que um filme não ficava na minha cabeça por semanas — a atuação do garotinho? puts.
ainda sobre o tema audiovisual, tem gender agenda que temquever, qualquer coisa com hannah gadsby e alok vocês são obrigades a assistir; amei magnatas do crime, tipo um breaking bad pra geração fleabag; estou apaixonada por todas as pessoas e looks de heartbreak high: onde tudo acontece; levei a primeira temporada de perfect match pra terapia, claro. e a quem interessar possa: tem temporada nova de a batalha dos 100, só dizendo.
não queria ter que compartilhar esse texto, mas dado o que vivemos, esse texto aqui é fundamental: j. k. rowling, uma representante da nova extrema-direita, da lana de holanda, perfeita.
e a ana mendieta que vai ganhar uma série de tv estrelada e produzida pela sempre ótima america ferrera?
essa matéria sensível, bem escrita e cheia de referências maravilhosas d’o grito!, que tem salvado minha fé no jornalismo: maracatu de baque solto une tradição e modernidade com nova geração de mestres, com fotos de chorar do fantástico hugo muniz.
Eu sinto essa falta de solidão quando tento me conectar com os outros. É um movimento contraditório esse, mas às vezes para ficar sozinha eu procuro os outros, esses estranhos que podem ser espelhos, que podem ter as palavras certas para descrever algo que eu sinto, mas não consigo nomear. Essa procura acontece nas artes. Na literatura, na música, nas pinturas. E com frequência eu tenho sentido um alento maior e mais autêntico em coisas antigas, coisas do passado, enquanto na contemporaneidade tem sido mais difícil encontrar pérolas que traduzam bem meus sentimentos ou que me apresentem coisas totalmente novas. Há uma sensação de repetição tão profunda quanto o abismo sem fundo da rolagem da tela no celular. Às vezes o mundo parece tão barulhento que eu não sei se sou eu ou a pessoa do outro lado, mas algo não está se encaixando. Minha suspeita é de que falta solitude na nossa solidão. Uma certa privacidade no sentido de privação, de estímulos, de visual, de movimento, de som. Há um desconforto no meio do mundo superestimulado. Não acredito no isolamento total como uma resposta a esse inquietamento, mas acredito no ruído intercalado com pausa, como a música é construída, de sons e silêncio. Tem nos faltado o silêncio para formar o ritmo. Infelizmente, o barulho sem interrupção é apenas um chiado. Ruído branco. Tudo está preenchido.
— da expedição criativa sobre a solidão, da vanessa guedes
o primeiro seminário do MASP dedicado às histórias latino-americanas, da série que antecipa o programa de um ano que vai acontecer em 2026, com a participação de alejandra ballón gutiérrez, da cooperativa gráfica la voz de la mujer, de elvira espejo ayca, do grupo de arte callejero, da javiera manzi, da leda maria martins, da lia colombino, da natalia de la rosa e da sol henaro.
a beleza e maluquice da casa-ateliê do sendak, essa entrevista bonita com os seus companheiros de vida.
me senti obrigada a comentar porque se eu to triste eu penso automaticamente "o tradutor usou CRIATURAS no titulo" e fico felicissima
Isa! Março foi foda, certamente há de ter uma justificativa astrológica suficientemente plausível para esse fenômeno de dias cinzas, abafados e tremendamente angustiantes. Sabe o que é irônico? Quando você mesma é a terapeuta, e aí "quem faz o palhaço rir?" - desculpa, me colei no teu desabafo. Desejo que as cores sejam mais visíveis neste abril. Abril que aqui na minha cidade, é o mês de cores mais bonitas, dizem. Um abraço apertado querida! Ahh e excelentes ombros esses também ;) (eu sou a única pessoa que ainda faz emoji com ponto-e-vírgula)