é o nome correto, científico ou mais bonito (apenas neste caso e mais um punhado, como o do jacuguaçu, que é penelope obscura na certidão de nascimento) daquele osso protuberante na lateral do pé, do lado do dedão — em geral. às vezes acontece também no canto do mindinho e leva o sobrenome de alfaiate, mas eu não tenho condições de explorar as origens de mais essa divergência. tenho certeza, porém, de que você conhece ao menos uma pessoa (chuto que mulher) que sofre da condição chamada de maneira muito mais charmosa de joanete.
joaNÊTE ou joaNÉTE, aliás, o que me rendeu um dos episódios de vergonha extrema na infância que ainda esquenta as minhas orelhas aos trinta e cinco anos de complexo de inferioridade — mexam com tudo, mas não me tirem minha vocação de saber sempre sobre todas as coisas. lembro de comentar sobre a dificuldade de locomoção da minha bisavó e falar com total propriedade e acento agudo, o que levou a sala cheia de adultos às gargalhadas. fosse pela pose abusada da menina rechonchuda que também comentou que a mãe de uma colega tinha morrido de câncer-de-próstata e que, bem mais velha, quis reproduzir uma cena de um stand up the early years que fazia graça da personagem conservadora viúva do presidente gêiser, fosse pelo o que depois descobri ser um sotaque que me entregava quando eu sequer sabia que tinha que disfarçar. coragem, pelo visto, nunca me faltou: leia a partir daqui, sempre, joanéte.
hallux valgus, hálux valgo ou joanete, pois bem, é tecnicamente, um tipo de deformidade em que o dedão do pé se inclina em direção aos outros dedos, alargando aquela voltinha lateral onde o sapato aperta (sempre). hoje, é considerada uma das doenças mais comuns do pé humano, e eu tentei muito achar essa lista completa: diz que afeta em média 1/4 da população adulta moderna e ocorre com mais frequência em mulheres e pessoas com mais de 65 anos. sintomas: faz calo, incha, inflama, torna qualquer calçado um suplício e “também pode afetar a qualidade de vida, limitar a mobilidade e causar dores crônicas e quedas”. por outro lado, um estudo de 2013 classificou apenas 24% dos sites sobre joanetes como precisos e atualizados, e uma análise de 2022 descobriu que quase 2/3 das fontes de informação online sobre elas carecem de transparência: então a partir daqui, você acredite no que quiser.
segundo os cientistas (artigo masculino intencional), as joanetes (artigo feminino intencional) não fazem muito sentido evolutivo, uma vez que a seleção natural deveria favorecer os indivíduos sem esse tipo de deformidade. eles culpam a estrutura única do pé humano: num estudo de 2017, compararam nossas patas com as de chimpanzés e gorilas e perceberam que, pasmem, as nossas se reorganizaram, já que não as usamos mais para agarrar ou nos pendurar em coisas, como nossos primos. não que fosse preciso Um Grande Estudo, assim, mas já que foi feito: a gente andar de pé, com a postura ereta, de patinete elétrico, no asfalto, usando crocs de plataforma, causou uns estragos, tencionou uns músculos, comprimiu uns nervos. outro estudo desses foi feito pelo pessoal da arqueologia pra comprovar que joanetes existem desde a antiguidade — pegadas pré-históricas, múmias egípcias e corpos enterrados na Inglaterra durante os séculos XIV e XV, essa ampla amostra, apresentaram todos eles, indícios de hálux valgo.
“valgo”, aliás, na ortopedia, significa:
que se desvia para fora, em relação ao eixo do corpo (diz-se de membro ou segmento de membro).
e se você busca pela etimologia da palavra, temos que a expressão latina hallux valgo significa literalmente "grande artelho que se desvia para fora", como se a gente fizesse alguma ideia do que é um artelho, literalmente ou não. já a denominação popular “joanete” tem origem no termo castelhano juanete, diminutivo do nome juan, usada, segundo o dicionário houaiss, de forma depreciativa como nome de gente rústica, e de acordo com o blog dicas de português, com menosprezo, como nome de pessoa rude e pobre, gente que tem joanete. em inglês, joanete é bunion, coelho com cebolas, diz que vem do francês antigo do século 18, buignon, buigne, referente à “colisão na cabeça”, ou da palavra grega para nabo, já que a protuberância na parte externa do pé geralmente parece vermelha e inchada, como a raiz tuberosa. ou seja, não entendi nada, mas em outra língua.
o que realmente me intrigou (mas não a ponto de fazer com que eu expandisse minha investigação pra além do google) foi imaginar em que período histórico aconteceu a ruptura entre os possíveis significados sociais da joanete. se em algum momento a referência de gente com joanete era a de pessoas pobres, joõezinhos e o joanazinhas de pés tortos, rudes, retorcidos e vindos da terra como os nabos — interpretação livre aqui — qual foi a minha surpresa ao descobrir que durante a idade média, só a alta burguesia era agraciada pelo calo. isso porque a última tendência então era usar poulaines, sapatos de couro terrivelmente pontudos que causaram a primeira crise estética da qual se tem notícia e também uma epidemia de joanetes. o “ápice da moda no reino unido no século catorze”, ou, como relatou jenna dittmar, a paleopatologista e pesquisadora da universidade de cambridge que conduziu o estudo que analisou quase 200 esqueletos da época:
“parece doloroso ao olhar o osso.”
ao que tudo indica, indivíduos mais ricos e que moravam em áreas urbanas tinham maior probabilidade de sofrer de joanetes: apenas uma porcentagem bem pequena de esqueletos nos cemitérios rurais e na periferia da cidade tinha pés tortos, versus a quase metade dos corpos que descansam nas terras do que costumava ser um convento agostiniano – principalmente clérigos e benfeitores ricos. não que eu vá arriscar uma relação leviana entre a classe religiosa e os desvios para fora, mas a gente bem sabe que o clero gosta(va) de sustentar um outfit. essa ostentação foi um problema tão grande para as autoridades eclesiásticas, aliás, que os sapatos pontudos foram proibidos em 1215, e depois de novo em 1281 e 1341, e tenho certeza que existe algo no tik tok ainda hoje sobre eles — contra e/ou a favor. fato é que o mesmo estudo também descobriu que os esqueletos das pessoas com hállux valgus que morreram depois dos 45 anos tinham mais sinais de fraturas que normalmente resultam de uma queda (tipo, fraturas nos membros superiores, que indicam que a pessoa caiu de cara no chão). por fim, mais esqueletos masculinos do que femininos tinham joanetes, mas a paleopatologista garantiu que a amostra não era equilibrada, e que a equipe não conseguiu concluir se havia mesmo uma disparidade real entre gêneros.
hm.
se faltam pesquisas arqueológicas em esqueletos medievais para comprovar se joanete é realmente menina, porém, não são poucas as matérias com lista extensas das celebridades mulheres que carregam a condição — isso hoje em dia mesmo, anos dois mil e vinte e tanto, no colapso do capitalismo tardio. numa análise rápida feita a partir dos conhecimentos obtidos para a produção desse texto, constato: achei exagero. no máximo, a ponto de precisar de cirurgia, talvez a oprah, a viviane araújo e a kelly key; a nigella com certeza, dói até de olhar. das kardashian, eu chuto que só a kourtney. pra além das fotos de centenas de pés espremidos em sandálias de tiras finíssimas e saltos altíssimos, a internet está repleta de matérias, links, artigos e dicas que insistem que ainda que não sejam seus principais causadores, os sapatos errados ajudam a piorar o problema. uma questão talvez tão fundamental da existência humana quanto a do ovo e da galinha, quem veio primeiro: a predisposição genética ou o reforço social do meio ambiente. se fosse mulher, darwin certamente teria um livro a respeito, não precisaria nem ter dado uma volta de navio — mas era homem, afinal, e podia olhar pro mundo além dos próprios pés. a verdade até agora é que estudos comprovam a ocorrência maior da joanete em mulheres cis e com mais de 60 anos, seja por alinhamento dos astros, dos hormônios, dos cromossomos ou das tendências da semana de moda.
“acima de tudo, é preciso usar um sapato confortável.”
outra pesquisa, dessa vez de 2007 e com pessoas do século vinte e um, vivíssimas, descobriu que em uma amostra de 350 pessoas com joanetes, 90% tinha histórico familiar da doença em pelo menos um parente dentro de 3 gerações. já a amostra de uma unidade de mulher cisgênera de são bernardo do campo com trinta e cinco anos e inúmeras outras dores, comprova: a bisa sim, vovó não, minha mãe até operou, eu usei palmilha e outros gadgets corretivos — por isso ou não, não as tenho. gosto mais da teoria oral passada com tom de profecia: sempre pula uma geração. pesquisei, é claro, com o mesmo método científico usado em todo esse texto, e não há realmente nenhuma referência da mandinga, seja pra joanetes ou outras doenças hereditárias. prefiro assim, com esse ar que justifica lobisomens nascerem em famílias de sete mulheres; me dá o poder de escolha de encerrar a maldição por aqui.
não tenho nenhum registro definitivo, mas me permito escrever essas histórias mesmo assim: a primeira não teve nenhum contato com sapatos de bico fino ou saltos altos; usava, no máximo, as coxas para segurar as telhas que fazia com as mesmas mãos com que crochetava toalhinhas de renda pros móveis feitos de caixote. dos pés, tem a história (também no limiar da lenda) de que vieram caminhando os sessenta e oito quilômetros entre a cidade em que faziam telhas e a que conseguiram fazer a vida — alternando entre andança e um burrinho, que pra mim, era burra. quando uns oitenta anos separavam a sua idade da minha, lembro de olhar pros seus pés com terror e empolgação: eram garras. a segunda é mais difícil, mas arrisco que tenha tido um ou dois pares ao longo da vida, na crueldade de provar seu valor com os mesmos princípios que a mantinham em cativeiro. ainda assim, não teve joanetes, mas os famosos dedos de gancho com que cortava os cabelos dos outros, costurava roupas para fora e corria atrás do marido com uma faca — teve aquela vez da enxada, também. da última não tenho coragem de falar, só que foi sempre só um coração retorcido.
existe toda uma variedade de interpretações emocionais sobre a protuberância joanética, dentre elas a minha preferida: a indiscutível “joanete é um trauma que a pessoa teve”, que se desdobra, ainda, em “se aparecer no pé direito, o trauma é relacionado ao pai; no pé esquerdo, à mãe”. dizem que a joanete traduz no corpo o sentimento de forte desamparo, e que acontece quando a pessoa se doa demais e não recebe reconhecimento algum pelos seus esforços e renúncias, quando coloca os interesses dos outros a frente dos seus próprios. dizer mais “não”, parar de querer agradar a todas as pessoas, corrigir a postura e a pisada e/ou superar o trauma pode fazer com que o dedo volte ao normal. folha de louro também ajuda. senão, só cirurgia.
“nervo ciático”, “fibromialgia”, “neuroma de morton”, “artrite reumatóide” e outras dores, agudas e crônicas. algumas das outras expressões que entraram no meu vocabulário ao longo dos anos vivendo nesta família de mulheres com dedos de galho e pés de raízes tuberosas. não teve um dia em que não ouvi falar de dor, ainda que a dor não tenha, ao menos fisicamente, matado nenhuma delas. ainda que todas tenham tido troncos pequenos e resistentes e cabelos de algodão e mãos e pés de dinossauro, naquele meio termo fantástico entre pássaros e répteis. a pele cascuda, os nós inchados, a forma rígida, contorcida. cada uma das centenas de pequenas ruguinhas nos dedos que começam a aparecer nos meus também. mãos e pés exatamente iguais, não precisa de teste, estudo, comprovação científica; exceto pelas joanetes. não importa o quanto eu hidrate mais a pele, alongue mais as juntas, entorte menos para caber, diga mais nãos e corra atrás de mim mesma com uma faca. com uma garra nos pés, embora eu não consiga lembrar bem de quem ela veio.
vou mudar o formato das indicações por aqui pra tentar (re)organizar a casa e produzir um pouco mais nesse espaço que tem sido tão gostoso e seguro. ainda não vou ter a ousadia de chamar de projeto pra não agourar nada, mas quem sabe.
fiquem comigo, porque vem aí!
não, e tem mais:
➝ por incrível que pareça, foi o podcast vinte mil léguas que me colocou no caminho desse texto tão diferente do que costumo escrever. pra quem chegou 4 anos atrasada como eu, a série hypada na pandemia fala sobre tio charles darwin e seu a origem das espécies a partir do universo em que o naturalista britânico viveu, lendo os livros que ele leu, e articulando suas ideias com um monte de outras tão legais e revolucionárias quanto — à época. tem um tom sutilmente pedante que me incomoda um tanto, mas gosto muito das conexões que elas exploram e da didática em apresentar a biologia pra nós, galera de humanas.
➝ faz um tempinho que fiz o curso como transformar escrita pessoal em ensaios prontos para ganhar o mundo, da vanessa guedes e, desde então, muitas coisas mudaram por aqui. destravei uns enroscos desses que a gente que se expõe na internet inevitavelmente acaba fazendo, mas mais importante: consegui enxergar novas possibilidades pra newsletter a partir dele — o que implica também na responsabilidade que eu tenho de construí-la. já que eu indico texto da segredos em órbita em praticamente toda edição, fica aqui esse reconhecimento formal! 🧡
➝ não tem jeito, vou ter que registrar: camila sosa villada é mesmo minha autora favorita. o parque das irmãs magníficas já tinha me tirado do prumo (e me dá vontades de releituras) de um jeito muito particular, mas engatei tese sobre uma domesticação que, concordo com a própria autora, é o melhor livro dela, e a viagem inútil, e sinto que houve um antes-e-depois, sabe? “um livro sobre como a literatura alcançou a vida de uma pessoa que não estava destinada a ela”. me diverti demais com essa entrevista que ela deu pra adriana ferreira silva:
eu dependo somente da minha vontade. então, suponho que as pessoas sentem curiosidade por uma escritora capaz de dizer que, se não precisa mais ser publicada, não será. Se nenhum editor me quiser, que não me tenham. não vou morrer por não escrever.
sempre falei joanéte, estou em choque