em pandarecos
sobre o burnout de personalidade e outras reflexões absolutamente autocentradas
pandarecos; expressão popular que significa:
1. quebrado em cacos;
2. cansado; exausto.
nem pra isso eu sirvo: não posso te oferecer nada muito mais além do clichê da minha geração: eu cansei das redes sociais. tá, talvez esse seja só (mais um) jeito de dar uma diminuída na real extensão do problema e fazer piada da desgraça completa, mas eu me recuso a aceitar o diagnóstico ridiculamente caricato de mim mesma e falar em burnout. imagina que, logo eu kkkkkk, iria aceitar de bom grado qualquer tipo de profissional com a ousadia delirante de me dizer que minhas próprias escolhas e decisões conscientes sobre meu empenho e dedicação exagerados para compensar desesperadamente outras áreas da minha vida me levariam a um distúrbio emocional com sintomas de exaustão extrema, estresse e esgotamento físico resultante de situações de trabalho desgastante, que demandam muita competitividade ou responsabilidade.
jamais.
diagnósticos da box 1824 a parte, o fato é que cansei. cansei assim, ontologicamente. e o que poderia ser só mais um fato banal da vida de uma pessoa absolutamente previsível acabou se tornando A Maior Crise Existencial de Uma Pessoa Absolutamente Previsível porque, bom, eu não sei se vocês repararam, mas essa é a única constante na minha vida desde que eu me entendo como um ser individual e coletivo situado neste mundo — ou desde o meu primeiro blog. eu e a minha personalidade fundamentada na internet estamos completamente exaustas.
[aqui cabe aquele parágrafo bonito sobre templates de blogs feitos no bloco de notas com html de uma apostila impressa e encadernada na gráfica da escola e um mundo mais simples em que o flogão era apenas um lugar para publicar suas fotos egoicas. tá aí, tudo o que eu queria: a volta do flogão e um lugar onde eu apenas pudesse publicar as minhas fotos egoicas.]
o fato é que a internet fez 32 anos, é millennial essa querida, e ela está completamente esculhambada:
atualmente a internet é a gata de 32 anos, belíssima e consolidada, aparentemente independente e dona de si, jura que sabe de tudo e de todos, busca sempre boas experiências em fins de semana e feriados. mas... a gente sempre chega no MAS. ela está completamente esculhambada, carente, fragilizada, empanzinada de conteúdos sem dar conta de acompanhar nem metade, ama positividade tóxica, se transformou em um criadouro de síndromes, transborda podridão e cansaço. ela é complexa, cheia de nuances, passa dias e noites fugindo de golpes, pagando contas, dançando e buscando equilíbrio. às vezes toma remédio sem prescrição médica. você beijaria essa garota? não rola outra alternativa, esta é a única disponível.
me lembro bem que a primeira coisa que me pegou irremediavelmente quando eu descobri a série dos livros do Harry Potter na feira do livro do meu colégio em São Bernardo, depois de uma matéria da Veja que falava dos seus valores morais para a juventude (tava tudo lá, né gente…) foi a incrível coincidência das nossas idades: Harry começava sua sequência de aventuras dos 11 para os 12 anos, desesperado pra ser sequestrado do seu mundo sem graça exatamenteaomesmotempoemque a Isadorinha de recém feitos 12 anos precisava de algum ser extraordinário que a fizesse esquecer que era a menina gorda nos anos 2000, CDF e pronta pra fazer as maiores idiotices que o Gui C. pedisse a ela (escondido). Harry e eu fomos juntos de mãos dadas até o final da série de livros e filmes, salvo um ou outro atraso editorial, e é dessa mesma maneira que nos encontramos hoje: como amigos de colégio que viveram uma vida das mais importantes juntos e que hoje em dia não conseguem sequer frequentar o mesmo grupo de whatsapp sem chamar o outro de fascista transfóbico piranha feminista. graças a deus.
ultimamente, é assim que eu venho me sentindo com a internet. xoxa, capenga, anêmica, frágil e inconsistente, estamos eu e ela aqui exatamente na mesma idade e enfrentando absolutamente as mesmas crises, embora com vergonha de admitir que temos mais em comum do que jamais gostaríamos. tentando sobreviver a esse envelhecimento degringolado e, talvez mais que isso, a uma sobrecarga da gente mesma. essa exaustão e esse esgotamento, me parecem, falam mais sobre um exagero de nós mesmas, um cansaço das certezas que construímos com tanto esmero pra cada uma de nós: eu e ela, a internet, sabe. deve ter um report sobre isso, vocês depois nunca mais compartilhem comigo. deve ser um sinal de nossos tempos, um sintoma alongado da pandemia, uma característica da nossa geração. não me importa muito, deus me livre ter que ler a opinião de alguém sobre qualquer coisa. ou que vocês achem que esse é um ensaio opinativo sobre algum tema. deus que me livre.
me sinto cheia. empanzinada de tudo isso que a gente fez até aqui pra provar pra gente mesma que somos tudo isso mesmo, que cumprimos a cartilha da nossa geração: eu sei eu sei, a gente já mudou, já não somos os mesmes, não temos imóveis próprios carros investimentos filhos e se temos não somos mais apenas mães mulheres de negócios tomamos nossas próprias decisões questionamos a família lemos elena ferrante torto arado e silvia federici citamos ailton krenak implodimos os empregos repetimos à exaustão sobre destruição ambiental a camada de ozônio e falamos muita merda sobre o genocídio na palestina porque aí também não sejamos tão radicais assim. não é a mesma cartilha, de certo, mas foi feita com o mesmo papel cartão e cola pritt que a gente fazia antigamente, e agora imagens geradas pela inteligência artificial — impressas em papel reciclável, porque aí também calma, que tela demais faz mal.
deve ter um report sobre isso, um artigo da new yorker e um livro do byung-chul han. não me contem.
pois bem, o fato é que entre um surto e uma busca por imóveis pra alugar em algum lugar do sertão do pernambuco, aconteceu um fato, no mínimo, curioso: eu venho apagando meus seguidores do instagram. um a um. de forma manual não por fetiche, mas é que a plataforma em si não me oferece alternativa, um delete em lote ou algo aparecido — embora não possa deixar de assumir que tem algo meio terapêutico, quase erótico, em fazer dessa forma.
[um interlúdio caso você tenha chegado até aqui de forma descolada da minha persona do instagram: eu tinha um perfil grande no instagram, que já teve mais de 30k (pronuncia-se trintacá), em que eu compartilhava fotos bonitas minhas, da minha vida, umas opiniões bosta sobre uns livros medianos e meia dúzia de abobrinha em formato de vídeos fruto de uma autoestima delirante que só a internet pode te dar. nem precisa me procurar, eu não vou te aceitar. voltemos.]
e não apenas passei a excluir os seguidores um a um — o processo continua, consegui, até agora, eliminar dezcá — como também tranquei meu perfil e (agora pega, prestem atenção) e fechei minha inbox, ou seja, bloqueei qualquer possibilidade de interação pessoal entre seguidores e eu. fechei o canal em que as pessoas entravam em contato comigo. me mandavam mensagens. reagiam ao que eu postava. expressavam suas opiniões não solicitadas. pediam a minha. falavam comigo.
a lógica que pode não fazer sentido algum por que é mesmo que você está lendo essa minha newsletter? é mais ou menos algo como: eu não quero ter que lidar com as expectativas que vocês criaram ao meu respeito (baseadas em elementos que eu mesma forneci para vocês). entende? cada partezinha da Isadora que por algum motivo vocês acharam que a faria uma pessoa legal de acompanhar, ainda que fosse para passar raiva, está em fase de revisão, balanço, passa por testes. eu não sei mais se elas vão ficar, sequer se elas fazem sentido — e, em mais de uma vez (tantas mais!) eu olhei pra elas e dei gostosas risadas: quem é que essa garota estava achando que era? lógica essa que se estende para então os famigerados seguidores, que numa análise rápida me parecem absolutamente deslocados, infames e bom, no mínimo, muito enganados do que estão ainda fazendo por ali.
lista dos critérios de exclusão de seguidores do meu finado perfil público no instagram:
nome de alguém que já me traumatizou. nome parecido com o de alguém que já me traumatizou. se sua foto de perfil está em branco, ou é um desenho, ou gerada por inteligência artificial, ou tem uma família de mais de 1 (um) membro, ou é a imagem de uma planta, animal ou espécie do reino fungi. se o seu perfil é comercial. se o seu perfil é fechado e eu não te conheço. se o seu arroba é metido a muito engraçadinho. se o seu arroba é metido a muito sério. se você é uma loja, store, ateliê, atelier, estúdio, studio, casa, cafofo, toca, apto, apartamento. se seu perfil tem alguma palavra relacionada a livros. se seu perfil tem alguma palavra relacionada a política. se o seu perfil tem alguma palavra relacionada a veganismo. se você me passa uma vibe muito avidadetina. se você parece a vidadetina ou as pessoas que aparecem nos vídeos da vidadetina. se você faz cerâmica. se você é herdeira. se você parece uma modelo da farm. se você quer muito deixar de parecer uma modelo da farm. se sua localização é emoji pin SP. se seu nome de usuário tem muitos underlines ou numerais. se esses numerais formam um ano menor que 1970 ou maior que 1989.
já deu pra entender que não é com você, é comigo, né? mesmo.
comecei a escrever esse texto há milhões de meses (eu não vou nem olhar) no começo desse processo de desaparecimento e, de lá pra cá, parei umas duas ou três vezes, ou mais. de lá pra cá também vem se desenhando um fenômeno engraçado que é revisitar quem eu já fui, numa busca desesperada de entender o que eu perdi e o que eu deixei pelo caminho. perdi, seja por desatenção ou trauma, e deixei, tanto por escolha quanto por necessidade. e foram muitas e muitas coisas nessa corrente ruim de instagram em que a gente marca “coisas que eu fiz em 2023", virge.
é confuso e estranho — como absolutamente todas as coisas que partem de mim num âmbito mais subjetivo — que tenham exatamente a mesma fonte toda a minha repulsa e o meu encantamento: eu mesma. ó que coisa horrorosa: não é mais (só) o presidente, não são mais (só) as condições climáticas, o apocalipse mundial, a guerra, o capitalismo, a volta da calça jeans de cintura baixa. o que me incomoda e me paralisa na mesma medida é a profunda consciência de quem eu sou e daquilo do que eu sou feita. ou, de maneira menos pisciana: me sinto dentro de um episódio de fim de ano da série da Marie Kondo em que ela revisita as caixas de tranqueiras guardadas num armário de arquivos na casa dos pais. escarafunchando tudo aquilo que me fez vir até aqui, o que me construiu, quem fez parte e quem não faz mais, os bilhetes assinados por pessoas que não sei mais quem são, as fotografias com escolhas equivocadas de estilo de corte de cabelo e os ingressos dos shows de bandas que nunca mais ouvi. tentando descobrir o quê disso tudo me traz alegria.
talvez quando tudo isso passar eu me sinta confortável o suficiente para deixar que outras pessoas me conheçam e saibam quem eu sou. descubram do que eu gosto. me perguntem sobre as coisas da vida, se pá. mas sem pressão (e eu nem conseguiria) vamos mesmo ver o que é que vem por aí e qualéqueé essa versão que vamos encontrar. conversando com uma amiga esses tempos (claro), chegamos à conclusão que é na verdade uma coisa ótima essa da gente não ser estanque, não estar presa a uma versão definitiva, não tenha isso de apego ao personagem. que possamos mudar. mas é que cansa não saber nem por onde começar, né?
é claro, não preciso nem dizer: eu estou cansada demais pra elaborar a personalidade de 2024 — isso pra não dizer que não sei nem por onde começar. tem uma listinha de vontades, por assim dizer: porque não há alternativa (acreditem, eu tentei!), seguir colocando minha energia no trabalho e nos exercícios físicos, embora com mais moderação. voltar a encontrar alguma admiração por mim mesma, de novo, a ponto de não querer me esconder mais do mundo e dos outros. sentir menos raiva. ou direcionar com mais sabedoria a minha raiva, talvez. e continuar ouvindo (se der, fazendo também) música e andando de bicicleta.
já tá bom.
te entrego:
na newsletter da isabela thomé conheci o disco te pego pela palavra, da marlene, e estou completamente obcecada:
falei que tô revisitando coisas que me trouxeram até aqui, né? bom, tô 150% imersa novamente no maravilhoso mundo das drags e da cena ballroom. então temos a copa do mundo gls, drag race brasil — que coisa linda, a greg, as nossas drags, as subcelebs no snathc game brasileiro, TUDO —, temos tudo o que eu reassisti de pose, a série mais maravilhosa já feita na história da humanidade, temos veneno, que meu deus, meu coração, e temos divinas divas, sobre estrelas icônicas do teatro rival, palco da primeira geração de artistas travestis do Brasil.
ainda sobre o mesmo tema, conheci (e desde então, já revi!) o musical brenda lee e o palácio das princesas, peça do núcleo experimental que conta a história de caetana — depois tornou-se brenda lee! — ativista que fundou a primeira casa de apoio para pessoas com HIV/aids do brasil. eu não tenho palavras pra descrever o tanto que esse espetáculo me emocionou, a beleza das músicas, a força das atuações. uma recomendação só? vejam. mesmo.
última recomendação sobre o tema: agora o livro rainhas da noite*, do chico felitti que, apesar de toda minha rabugentice, faz isso muito bem — contar histórias de quem não conseguiu contar sua própria história. aqui são as vidas de três das travestis que comandaram o centro de são paulo entre 1970 e 2010, e mexe demais comigo acompanhar essas vidas complexas e bonitas, ainda mais nesse cenário que a gente compartilha.
passear (finalmente!) pela bienal de são paulo, com o bonito nome coreografias do impossível, foi um dos pontos altos das minhas miniférias. como com tudo, não consegui escrever uma linha a respeito, mas a taís bravo fez um compilado maravilhoso do que ela mais gostou.
fadiga de performance e estranheza estética, tá aí o report, gente, me desgurpem. que a deusa nos devolva o surrealismo, por favor!
esse texto é ouro da nossa geração: do feminismo ao cinismo, da não prometo nada #16, que eu já citei aqui antes. está cansada(o) de tentar decifrar pequenas manifestações de comportamento na internet que não significam nada, mas parecem muito importantes? ô.
“Presumimos que a felicidade está nos acontecimentos do futuro, mas, na verdade, a forma como gastamos o nosso tempo e as coisas que fazemos todos os dias tendem a ter um impacto muito mais poderoso na forma como nos sentimos em geral. É por isso que é importante garantir que fazemos muitas pequenas coisas diárias que são boas para o nosso bem-estar, ou coisas menores e regulares que nos fazem sentir bem e que podemos esperar.”
— Emma Hepburn, autora de Um kit de ferramentas para suas emoções, que eu não faço ideia do conteúdo em geral (parece ruim kkkk), mas topei com esse trechinho num artigo (estranho) sobre a felicidade possível da vida sem filhos e talvez esteja repetindo à exaustão pra tentar sobreviver.patti smith além do gênero: feminismo glitch, judith butler e a cabeça explodindo por aqui, da lalai person: uns exageros teóricos elásticos demais, eu achei, mas gostei muito de pensar a minha musa maior, a patti, a partir dessa perspectiva também.
imagina você ter tanta certeza de quem se é e do que se gosta a ponto de ser assim? me parece um sonho — distante, mas um sonho. estou obcecada!
tem a leonora carrington, também:
Adorei receber tua cartinha querida (mesmo morrendo de medo de ser uma das seguidoras apagadas na sequência). Tu vem me inspirando já há algum tempo e entendo que na verdade não sejamos amigas, ainda que talvez eu tenha fingido que sim por um tempo. Enfim, sendo eu uma boa amiga, te desejo sorte e tesão de vida, com algum descanso e respiro. Um beijo sua linda!
não acesso o instagram há semanas por motivos muito parecidos com os seus questionamentos, mas, precisei voltar para saber se eu me encaixava nos requisitos para deixar de ser seguimora. ufa. por enquanto, não. pfvr, não me abandone, preciso de vc pra quando eu quiser abandonar os exercícios - bem, ainda não comecei os exercícios, mas vc é meu exemplo de grande gostosa.
compartilho de todos os seus sentimentos, mas o que me pegou foi a parte "eu não quero ter que lidar com as expectativas que vocês criaram ao meu respeito (baseadas em elementos que eu mesma forneci para vocês). ", porque eu lido de forma totalmente oposta, me fechando como uma ostra, mas vc me mostra que não precisa ser assim. já tenho assunto pra terapia de amanhã. bjs!