sempre me responsabilizaram demais pelas minhas ações. não é uma escolha de palavras ocasional: demais. se hoje em dia meu maior pavor nas outras pessoas é esse complexo de alecrim dourado de uma geração inteira que está sempre pronta pra dar tapinhas nas próprias costas, acolhendo seus sentimentos e incapaz de bancar a consequência das suas escolhas, talvez o ranço venha do mesmo lugar: essa senso apurado — pra não dizer neurótico — de que eu vou ter que lidar com cada detalhezinho das coisas que eu escolhi fazer.
tem uma cena absolutamente banal da minha adolescência em que estávamos todos prontos pra ir ao cinema e eu (sendo audivelmente apressada para sair logo e não esquecer de nada, como eu sempre fazia), derrubei uma garrafa de água na minha escrivaninha. como todas as coisas que eu tinha àquela altura, a mesa de madeira era limpa de forma quase hospitalar e, pra evitar possíveis arranhões, rabiscos, ou, risos, manchas de água, coberta por uma placa de vidro fino. claro que a água que se espalhou quando eu derrubei a garrafinha entrou por cada fresta, se instalou nas brechas entre a madeira e o vidro e, bom, causou um desastre. físico e — logo a seguir — emocional.
essa cena poderia ser igual a tantas e tantas outras que passaria batida, a não ser pelo fato de que, dessa vez eu me adiantei ao esporro: recolhi a garrafinha meio que ainda no ar, com a mesma velocidade desesperada corri pra pegar um balde e os panos de chão, levantei cuidadosamente o vidro, colocando umas folhas sulfite nos cantos do vidro apoiado na parede para não correr o risco de riscar (heh), avisei, com calma, que sabia exatamente o que tinha feito, sim, que todo mundo poderia ir embora enquanto eu cuidava da limpeza, claro, que tudo ficaria em bom estado, e como não?, e que eu sabia que o azar era meu de perder o filme e, quiçá, a minha escrivaninha.
normal.
o que poderia ser, junto de tantas outras situações similares, um trauma desses fundantes de uma personalidade medrosa e retraída, de alguma maneira acabou se convertendo apenas em uma hiper consciência da consequência dos meus atos; a certeza assim, esmagadora, que se eu derrubar, quem vai ter que limpar sou eu mesma. ainda bem que foi (só) (risos de novo) isso. essa hiper consciência não necessariamente me impede de fazer as coisas — poderia ser bem pior —, mas não precisa ter nenhum phd pra entender que eu vivo em um constante estado de alerta não necessariamente com o mundo, mas comigo mesma. atenta às consequências de tudo o que eu faço e penso em fazer. pavoroso e cansativo, eu sei. absolutamente normal.
talvez um lado bonito dessa forma horrorosa de aprender a errar seja a que eu genuinamente me preocupo com tudo o que eu vou fazer-dizer-agir para/com as outras pessoas: uma consequência bonita, ao menos, já que a motivação dela é só muito autocentrada e egóica, no limite, uma vez que se eu derrubei sou eu mesma que terei que limpar. no completo pavor de ter que arrumar as pessoas coisas, eu evito ao máximo quebrá-las, e essa responsabilidade é exclusivamente minha. quem me conhece sabe que eu sou uma pessoa muito aberta, disponível, sem medo de me envolver (que deveria ter mais, inclusive), o que seria uma resposta rápida a tudo isso aí que estou ridiculamente expondo, e que bom que sou assim; mas que também significa que eu sou muito preocupada. e me sinto muito responsável. demais, lembra?
eu faço tudo certo. o que nem de longe significa que eu acerte sempre, imagina só a audácia, mas eu faço tudo milimetricamente certo e limpo de maneira hospitalar. eu faço tudo certo para que não haja um espaço mínimo de críticas, berros, correções físicas ou emocionais ou água derramada, heh. todas essas reprimendas vindas, hoje em dia, exclusivamente do meu próprio senso hiperconsciente e crítico — não preciso explicar, né? parte dessa maneira absurdamente neurótica (agora eu disse, hein) de lidar com o mundo é a minha obsessão em estudar em profundidade todos os lugares em que eu poderia um dia habitar. lugares, coisas, pessoas, relações interpessoais, maneiras de estar no mundo, tecnologias, métodos de trabalho, ph da água. se eu conhecer o que eu estou falando eu vou saber o que é preciso para estar ali da maneira mais correta possível. sem espaço pra erros, berros ou correções que eu mesma vou ter que fazer depois.
daí vocês tirem o tamanho da minha incapacidade de lidar com a frustração. outra anedota da minha infância é que eu sempre fui uma criança que me quebrava muito — e que era hiper responsabilizada por isso, também, claro, afinal de contas, a culpa era minha de não me comportar. “olha o que você fez de novo", um contrassenso, uma vez que se tivesse visto, provavelmente não teria me quebrado. normal. eu amava fazer todo e qualquer tipo de esporte, estripulia ou bagunça física nos horários que me eram permitidos (e apenas nesses) e, vira e mexe, muito, acabava torcendo, luxando, quebrando e outras variáveis do meu diminuto corpinho: a piada era que os enfermeiros da ala ortopédica do hospital já me conheciam. mas o mesmo tanto que eu era feliz sendo uma criança que corria e pulava eu também era uma criança absolutamente frustrada com a possibilidade, real e dolorida e repetida, de me machucar. o que é que eu estou fazendo de errado pra ter que parar de fazer o que eu me esforço tanto pra fazer direito? entende?
normal, como eu disse.
hoje, adulta, e ainda mais consciente das consequências dos meus atos, vocês podem imaginar o quanto me deixa absolutamente emputecida ficar doente. emputecida é a palavra: borocoxô, com febre e cólica, catarro e ânsia de vômito, e emputecida. não que eu seja um grande baluarte do estilo de vida mais saudável que existe (são paulo, capitalismo, colapso ambiental etc), mas eu me esforço enormemente para evitar ter que, bom, limpar depois. e ser impedida de fazer as coisas que me tiram do entorpecimento dessa vida estranha e dolorida que a gente leva, assim, apesar dos meus esforços de fazer tudo certo, me aparece um vírus uma bactéria uma ist e, a despeito do meu esforço, tem a ousadia de me derrubar. quer dizer. à excessão de ressacas homéricas e previstas, medidas em prós e contras e muito arrependimento. cês imaginam como foi lidar com a pandemia dentro da minha cabeça. uhum.
✨ não é justo ✨, entende? não é justo que logo eu, que faço tudo certo, que prevejo todos os cenários, que me preparo para todas as possibilidades, que peso todas as saídas e que, novamente, faço tudo certo para que nem eu, mas também nem ninguém, saia machucado, tenha que passar por isso, simplesmente porque uma casualidade a aleatoriedade da vida o desejo das outras pessoas o colapso ambiental o capitalismo o alinhamento dos astros a individualidade dos sujeitos o movimento das marés ou qualquer outra merda destrua meus planos de não ter que lidar com tudo isso nunca.
um delírio narcísico. normal.
todo esse surto texto surgiu porque esses dias eu abri meu bloco de notas do celular e encontrei a brilhante e cafonérrima frase "porque sou eu que tenho que descobrir como me curar se não fui eu que me machuquei? hoje em dia tem médico pra tudo, credo.", assim, com ponto final, que escrevi em uma madrugada bêbada tentando contornar uma crise de ansiedade enquanto pintava a micro varanda do meu micro apartamento (momentos). além de doida, brega. mas assim, então quer dizer: você não pensou em mim antes de fazer, e em não pensando em mim você não anteviu como poderia se autorresponsabilizar sobre o que fez comigo, e em não antevendo o que faria comigo você não sabe também como fazer passar essa dor horrorosa que eu sinto por conta de algo que você fez pra mim, e aí juntando tudo isso quem tem que pensar nisso tudo e descobrir como resolver essa situação uma vez que você só faria o que eu preciso de verdade se soubesse o que eu preciso de verdade porém não sabe o que eu preciso de verdade e aí quem tem que descobrir o que eu preciso o que eu quero o que preencheria essa falta de verdade SOU EU? eu, que faço tudo certo, absolutamente e inexoravelmente de maneira correta e estava quieta no meu canto apenas existindo em plenitude?
coincidentemente ou não, oito anos depois do hype lá fui eu ouvir o praia dos ossos (se você estava em outro planeta como eu, o podcast que fala sobre o assassinato da ângela diniz e o julgamento do seu assassino) e (meu profundo ódio de classe a parte) quase tive um chilique de tanto chorar no episódio que exploram superficialmente o conceito de justiça restaurativa que, tão superficialmente ou mais, seria a busca da solução de conflitos por meio do diálogo e da negociação, com a participação ativa da vítima e do seu ofensor (fonte: primeiro resultado da busca no google). então quer dizer: eu estava lá de boa, fazendo tudo certo, daí você vem doneida e resolve acabar com a minha vida de múltiplas maneiras que articulam questões de gênero, raça, classe e paranoias da minha cabeça, eu fico aqui completamente destruída em pandarecos sem saber como começar a superar tudo o que aconteceu porém vivona e tentando superar porque afinal não existe outro caminho a não ser esse E QUEM TEM QUE DESCOBRIR COMO RESOLVER ESSA PARADA TODA SOU EU MESMA EM DIÁLOGO COM VOCÊ?
me parece um surto, francamente.
(obviamente eu tenho fortes inclinações sociais ao aprofundamento do uso da justiça restaurativa uma vez que a justiça tradicional é uma máquina de moer gente pobre e preta e o sistema carcerário é uma falácia e estou usando do recurso da IRONIA e do CINISMO neste texto, vocês peloamordedeus embarquem na loucura do meu ego comigo)
quer dizer, final de 2023, apocalipse, cidade afundando, volta da calça de cintura baixa e sobrancelha fina e a gente ainda não tem um manual pra isso? uma série de leis absolutamente aleatórias, classistas e racistas que prevejam genericamente todos os casos da mesma forma e que possam me dar alguma orientação no sentido do que caralhos eu posso fazer? ou melhor: de que maneira eu posso punir para, então, finalmente superar? um passe livre da geração dos tapinhas nas costas que valide meu desejo vingança alegando, sei lá, responsabilidade emocional? um perfil no instagram que me dê uma cartilha mal escrita? uma sessão com uma coach? uma rotina de exercícios que comece às cinco da manhã? quer dizer mesmo que eu estava aqui fazendo tudo certo e a vida simplesmente aconteceu e eu vou ter que aprender a dizer o que eu realmente quero espero ou suponho para que eu finalmente entenda que eu não sou o centro do mundo e que pessoas fazem coisas que não necessariamente se dirigem a me fazer mal? quer dizer que pra isso eu vou ter que desembaralhar tudo o que eu arrumei em ordem alfabética e selei hermeticamente e limpei de maneira hospitalar e está guardado há anos?
o ultraje!
nessas horas (e em TANTAS outras) eu queria ter só uma obrigatoriedade moral e ética indefectível de alguma fé que me obrigasse a ter que perdoar pra ir morar num plano espiritual elevado, sabe? deus castiga, dê a cara a tapa, a outra face, sei lá o que mais você quer que eu dê além de tudo o que já foi, minha cara, e eu te prometo o reino dos céus, esse barquinho em salvador e que nunca mais você dê os caminhos tão abertos pra que te machuquem desse jeito — porque depois é você quem vai ter que limpar. eu te prometo, sinal da cruz.
edição extraordinária depois de ter publicado zeroquatro unidades de textos em 2023 aparece em dezembro achando que é a folhadesãopaulo📍 Coitadolândia.
te entrego:
não exatamente sobre isso — como assim não fizeram um episódio de um podcast aleatório que sequer me conhece exatamente sobre o que eu estou sentindo? um absurdo, claramente — mas que porrada maravilhosa esse episódio do vibes em análise (credo) sobre rejeição que vocês já devem estar cansadas de ver por aí.
ser um animal, de fachada e o elogio da traição, da babi carneiro, que puta texto: “menos interessante do que humanizar um bicho e supor nele características nossas eu quero mais é saber o que tenho deles. mesmo que me falte o que eu mais queria: o dedo polegar opositor nos pés dos chimpanzés, gibões e orangotangos”.
você e a sua própria história, do luri, pra balancear essa nius carregada de drama e autocomiseração. sendo eu uma pessoa que anota tudo-tudo mesmo, achei estratégica e positiva a ideia de, também (e principalmente), anotar as coisas corriqueiras e boas.
parte da movimentação que descrevi na edição anterior dessa nius gerou uma reação nova por aqui: me abriu os olhos para as amigas e os amigos que fazem questão de continuar me acompanhando. mais que comentários de gente desconhecida, seguidores, ganhou espaço no meu peito, ai que cafona, os comentários que aparecem (e não publicamente!) de gente que eu já amo e já está na minha vida. daí que o ótimo amigo de escritor, da ótima sempre aline valek, calhou em ótimo tempo. obrigada, amigas, cês são tudo doida 🧡
isa do ceu. obrigada por escrever tudo o que eu precisava falar pra minha psicologa, porque estou elaborando há um tempo e não tinha conseguido colocar pra fora. e ai que bom não ser assim sozinha.