quando eu tinha dezessete anos, minha maior referência de vida se aproximava dos sessenta. (essa não é uma história bonita sobre a minha relação com a minha avó) (tá). foi quando eu conheci a patti smith e o mundo de possibilidades de existência que veio com ela.
conheci, mesmo: até então, minha criação na 89.1 gazeta fm a primeira não tinha me levado pra nenhum lugar remotamente próximo de saber quem a patti smith era. no máximo, a rebeldia dos Maiores Roqueiros da História com seu repertório estético viadíssimo, que pra mim até ali era, repetia com raiva, só pra chocar; depois aprendi a dar outros nomes, todos deliciosos.
a patti smith apareceu primeiro em texto, seu-meu ainda predileto só garotos que, se você já teve cinco minutos de conversa comigo com certeza me ouviu citar. uma grande bobagem e/ou também o clichê mais ridículo: a garota de dezessete anos da província desesperada pra fugir da sua realidade tosca se encantou com a história da garota da província desesperada para fugir da sua realidade tosca e que foi parar em nova iorque, com seus livros tristes, seu namorado artista, um violão e um cabelo mal cortado, drogas, sexo e roquenrou — aliás, que quando fui fazer download da discografia em torrent ouvir, absolutamente certa de que traduziria todos os sentimentos do âmago da minha existência, de cara detestei.
e não entendi.
esse texto não continua com uma carta de amor melosa, tampouco com uma lista das suas belezas que mais eu projeto na minha personalidade, imagina. onde eu quero chegar: li só garotos três vezes, em três momentos diferentes da vida — todos eles de crise. de uma perspectiva ou de outra, mais ou menos jovem autodestrutiva, mais ou menos velha contemplando o conforto da vida, o que mais me chamou a atenção no livro foi a serenidade da voz (narrativa?) da patti.
um olhar pra trás que descreve com a poesia menos afobada de quem viveu, mas ainda assim, com poesia. um contar a história com a contemplação de quem sabe que a escreveu de maneira consciente. ou as minhas projeções disso. mais do que a vida louca da roqueira andrógina poeta atormentada magra, todas as vezes eu terminei a leitura querendo sentir a sensação do presente — de um presente registrado em livro — em ser uma velha satisfeita.
essa sensação imaginária sempre me perseguiu. tentei usar outro verbo, mas todos variam do mesmo lugar: me assombrou, me conduziu. cada parágrafo da história pensado em como eu vou contar lá na frente, com que fúria ou serenidade vou recordar, em que cores vou escrever. mais que isso, a certeza absoluta, imperativa, de que eu vou ser uma velha incrível: dona de mim, confortável em quem eu sou, repleta das minhas coisas, pessoas, recheada de vida — e gostosa, claro. trabalho pra isso porque me preparo todo dia pra quando essa vida chegar, aí, puts, eu vou ser radiante, plena, completa. reserva de músculos, de dinheiro, de vivacidade, de imaginação, até, de desejos, eu me preparo, e me preparo bem demais pra quando essa vida chegar. e só me preparo. mas esse é outro texto.
as séries favoritas da minha vida têm mulheres velhas importantes. e ainda: comunidades de mulheres velhas. já chamei grace and frankie de série de conforto, daquelas que a gente assiste durante o almoço pra tentar evitar o burnáute, mas não rola: é especial demais. sim, um monte de tema urgente — sexualidade, casamento, emancipação, feminismo, relações familiares — mas, pra mim, é uma das histórias de amor mais bonitas que existe. e também tem, por supuesto, a frankie e a grace:
a frankie: sou eu, assustadoramente eu, a uma dose de peiote de distância de ser eu 100% — todo mundo que já assistiu a série do meu lado ri copiosamente da minha cara. ela também é a fantástica lily tomlin, uma das cinco pessoas mais legais de todo o universo, sem a menor dúvida.
a grace: é a jane fonda; aquela jane fonda, sim, a grande responsável pelo derretimento do meu preconceito com dinheiro, procedimentos estéticos e madames atléticas. tem muita história das duas juntas, trabalhando,
sendo presasmilitando, vivendo a vida, e novamente: é uma grande história de amor, das mais bonitas. e tem esse vídeo aqui:
a terceira parte desse trisal é a babilônica dolly parton, sobre quem eu nem ouso escrever, mas deixo aqui essa pérola da programação do feminismo comunista na tv aberta dos anos 80-90, como eliminar seu chefe, filme em que três secretárias cansadas do chefe machista, egoísta e mentiroso alimentam sonhos de vingança e planejam seu sequestro para forçá-lo a autorizar melhorias no escritório!!!!! e tá dublado!!!!!!
pra não criar outro tema-dentro-do-tema, trago apenas mais uma, a maioral: veneno. eu poderia ficar horas falando sobre veneno (e talvez esteja nascendo aqui uma nova orientação subaquática 🌊), mas vou apenas me dedicar ao núcleo das travestis velhas que moram todas ali, meio juntas, meio não, meio se amando, meio se odiando, uma grande família contra todas as expectativas de nem chegarem àquela idade (e toda a tristeza que acompanha isso). a série conta a vida fantástica do ícone da tv espanhola cristina ortiz rodriguez e vale cada segundo, mas vou deixar aqui sete minutos dos melhores momentos da amizade de veneno com paca la piraña (sim!!!).
faz uns anos que me peguei ouvindo só gente velha. e graças a uma das últimas alegrias de viver em san pabla, podendo assistir aos shows de cátia de frança (49 vezes e todas as outras que tiverem), lia de itamaracá, dona onete, amelinha, juçara marçal (que é a coisa mais indescritível que eu já presenciei), alzira e., minha roqueira maluca preferida. demorei, mas fiz issaqui:
sim, tem ney matogrosso nessa lista de mulheres velhas: chamem de licença poética, mas eu nunca me recuperei do show de proporções gigantescas que ele fez aos 83 anos. oitenta e três!!!!! de collant dourado e peito de fora (e casaquinho de pelúcia pra não pegar friagem)!!!!! a meta deixou de ser “envelhecer bem” pra “viver quanto tempo for possível com esse tesão”.
já devo ter contado essa história em outra edição: há uns 4 ou 5 anos (!), um amigo que me disse que achava o máximo como eu continuava experimentando fazer coisas novas a essa altura da vida (era uma aula de trompete). lembro todo dia, como um mantra.
esse ano, 2024, tem uma abertura brega na série imaginária da minha vida com letras rocambolescas e música romântica: A Retomada. no comecinho desse capítulo, fui salva por uma exposição bonita no tomie othake que me lembrou da possibilidade de me emocionar com um pedaço de pano pintado por um homem. compartilhei essa experiência única com uma senhora de seus 50-60 anos, de roupas pretas estrategicamente bem cortadas, tênis e cabelos brancos impecáveis. cabelos compridos, retos, mas desalinhados, aquele frizz elegante do cabelo morto, dizem. me permiti acreditar que estava vivendo alguma fenda temporal e entrando em contato com a isadora do futuro, encantada com a magia do universo, quando me contaram que ela mesma é da linhagem das herdeiras que fazem cerâmica e bancam seus cabelos mortos com a elegância de quem não precisa se preocupar.
durante a pandemia, a maior angústia da minha mãe não era morrer (a minha era que ela morresse): era não poder cobrir os cabelos brancos. minha avó sempre foi loira, errou a mão uma ou duas vezes pro acaju
, mas esse não é um texto sobre a minha avó. quando a gente se reencontrou pela primeira vez eu percebi que nossos cabelos estavam exatamente iguais de novo: e a desgraçada tem, no máximo, meia dúzia de fios brancos.amo que meus amores também estão escolhendo a velha que elas querem ser. me enche de tranquilidade saber que seremos velhas desbocadas e sem filtro social juntas. teresa attacca!
gosto especialmente de ver minhas artistas favoritas velhas: uma sensação de que estão finalmente sendo quem sempre tentaram ser. ou quando finalmente puderam ser isso. o documentário da maria lira marques inteirinho, mas as imagens dela cantando na beira do rio, puts. também as cenas preciosas da leonora carrington sendo a bruxona definitiva na sua casa-ateliê na floresta, no méxico. semiya, da cecilia vicuña, arrepia até os pêlos que já arranquei. os cabelos, sempre eles; presta atenção nos cabelos.
"envelhecer é um processo extraordinário em que você se torna a pessoa que você sempre deveria ter sido" — li essa frase do bowie na newsletter da ludmilla uns dias depois de ter escrito esse trecho aí de cima; nenhuma experiência é única mesmo né aiaiai.
morro de medo de começar a ler hilda hilst e nunca mais voltar.
aliás, uma meta pro ano que vem: ler hilda hilst, com uns anos de atraso. 2026 vai ter uma biografia porreta dela escrita pela porreta bruna kalil othero. me parece urgente. certa sempre esteve a hilda hilst.
a genial angélica freitas perguntou de forma aberta para as pessoas 50+: quais foram as coisas mais importantes que a vida lhes ensinou?
conheci efigênia rolim no seu post de aniversário bonito do novos para nós: nascida em 1931 (!) em abre campo (MG), a “rainha do papel de bala” começou a produzir e vive hoje em curitiba. faz sua arte com lixo: roupas, esculturas, apresentações e poemas. “[…] não há nada que eu goste mais do que isso; é preciso de imaginação e querer fazer.” seus trabalhos são narrativas oniscientes inspiradas em contos de fada, com personagens e histórias que transitam entre o real e o extraordinário. eu não tenho palavras:
o principal motivo de eu ter demorado tanto pra assistir como viver até os 100 anos é a raiva que me dá da romantização (essa palavra kkkkk) de uma vida longeva: qual o segredo das zonas azuis? dinheiro, saúde pública, acesso à cultura, rede de apoio, segurança, eu posso continuar por horas. MASSS descansando a militante cansada, puxa, que coisa mais lindinha. viver feliz (e com tesão), enquanto for possível. e mexer na terra, sempre.
nada é uma série que eu assisto sentindo o cheiro: de buenos aires, que outro dia eu escrevo, e do meu avô, igualzinho, ao menos a parte física que conheci — única memória que eu tenho, aliás, um cheiro forte de madeira e fumaça. manuel tamayo prats é um crítico gastronômico arrogante, daquela elite cultural da piauí que não percebeu a decadência e a substituição pela elite cultural da quatrocincoum. daí tem todas as relações horríveis que ele cria durante a vida, em especial com mulheres, claro, e a vida, ah, a vida. divertidíssimo e deprimente na mesma proporção.
sempre que falo sobre esse tema, alguém berra na minha orelha: já assistiu hacks!!!!? então fica aqui a recomendação antecipada de quem vai assistir hacks porque 4 pessoas maravilhosas estão contribuindo financeiramente com essa newsletter e me permitiram assinar o max (sentiu a publi? ♥). hacks tem tudo o que eu mais amo: mulheres velhas, jovens escritoras buscando a validação de mulheres velhas em relações tóxicas, e comediantes.
pra terminar, socorrinho:
e agora, isadora?
primeiro mês de newsletter organizada e eu o quê? isso mesmo: fui atropelada pela vida. vamo tentar de novo, vamo?
✍🏼 um texto por mês, diretamente das profundezas da minha cabeça — como já fazíamos antes, agora com data marcada: na última quarta-feira de cada mês.
🌊 orientação subaquática: um compilado de referências e conexões randômicas de tudo o que venha sendo minha obsessão nos últimos tempos. outra vez no mês.
💭 lá nas minhas notas compartilho trechos de outras newsletters que eu gostaria que mais gente conhecesse.
💟 inventário nasceu completamente sem querer, numa tentativa de arrumar minha bagunça interna no neurótico formato de lista. e vocês gostaram!
🍬 eventuais extras gostosinhos.
que lindeza